LONGA JORNADA NOITE ADENTRO

“... Alguma coisa de que sinto uma falta terrível! Lembro-me de que quando a tinha nunca me sentia só nem assustada. Não a posso ter perdido para sempre! Se pensasse isso, eu morreria! Porque então não haveria mais esperança!”

Eugene O’Neill

Abrem as cortinas de um cenário popular. As poltronas enfileiradas lotam o palco e nosso protagonista está sentado timidamente na penúltima fileira. Veste uma calça social bege puída e uma camisa fechada de listras marrons.

Não se trata do texto teatral de Eugene O’Neill, escrito em 1941, onde o escritor exorcizou seus demônios nos diálogos de algumas vivências familiares. O personagem, em cena, não é ator, nem viciado em morfina, não é filho do elenco, é apenas um homem do mundo sentado numa poltrona no curso da realização do próprio enredo.

A autora caminha pelo cenário, busca a realidade para escrever seus textos. Tenta resgatar alguns sentimentos enquanto caminha por entre os assentos. O olhar se perde no palco de uma viagem noite adentro. Senta-se ao lado do homem.

Como encontrar a trama correta? Como deixar de ser personagem?

Ele sorri e inicia um diálogo cotidiano. O princípio é marcado com as condições do tempo, a proximidade do Natal, mais um ano, menos tempo... As palavras são repetidas e remontadas em novas frases. O diálogo é empobrecido. Um pequeno intervalo marca o movimento do personagem buscando a maleta embaixo do banco.

O homem pega quatro comprimidos coloridos em recipientes diversos e os toma num metódico ritual. Olha para a autora e justifica a pausa falando sobre as patologias e os medicamentos que fundamentam seu teatro corporal. Nomes complexos, sintomas decifrados nas excursões hospitalares e ambulatoriais empreendidas pelo personagem. Coração, pressão alta, glaucoma, rinite...

“Ano passado fiquei uma semana internado. Problema de rim...”

O personagem se desnuda da máscara imposta pela autora. Não é apenas um viajante solitário preso ao silêncio de uma noite sem estrelas, é um tipo com caracterização própria. Apresenta-se como um homem de cinqüenta e quatro anos, policial aposentado e pastor de uma igreja evangélica.

A iluminação é sombreada por algumas luzes. O cenário é inserido no ambiente de uma estrada sinuosa. Sons de motores intercalam o diálogo. A autora busca, na janela, a fuga possível, mas a estrada é de mão dupla – a dispersão confusa.

Três filhos encaminhados – todos com segundo grau completo – dois motoristas de vans e uma secretária. Bons jovens, apesar da mãe... Ele casou com uma “irmã” da Igreja depois que ela fora atropelada. Bem que avisaram... Mas ele era cristão! Tinha de cumprir a promessa! O traumatismo craniano evoluiu em novos traumas: durante o matrimônio, ela depredou uma igreja católica, andou nua pela rua, arranjou um namorado casado na zona sul, abandonou o quarto do casal e, completamente sem razão, pediu o divórcio...

“Casamento é para sempre. Fui obrigado. O advogado, o juiz... Deus tá vendo!”

A mulher fecha os olhos e aninha as mãos no colo. Finge adormecer... O homem continua seu relato, cutucando-a levemente no braço de tempos e tempos.

“Será que encontro um boa esposa na Igreja? Dizem que no sul ainda têm boas moças que respeitam a “palavra”...”

A narração assume tons íntimos. O personagem confessa a autora seus males de amor. Já namorou algumas “irmãs”, foi afastado do “pastoreio” por causa do divórcio, não consegue viver sozinho, não pode adoecer tranqüilo, as namoradas não conseguem provar o “testemunho”, ele é um homem saudável, mas não é sujeito “do mundo”, a mensagem do evangelho...

A autora observa seu personagem com a iluminação de um farol alto. O perfil expressivo do homem, enrijecido em convicções e sofrimentos, é talhado na realidade, desenhado entre sua função no mundo e no céu. Policial e pastor. Guardião de tantas leis a serem alardeadas e cumpridas... A ordem pública e a espiritual traçam algumas rugas – molduras de um triste olhar...

O ser fragmentado sempre em busca de complemento.

A complexidade do homem simples desagua na foz do sentimento idealizado. O amor marca cada trajetória com a expectativa do destino. A autora, recém-separada, tenta buscar atrativos para argumentos apaixonados, versos para novas leituras eróticas. Gostaria de sonhar e despertar num porto seguro. O personagem não consegue dormir entusiasmado com a possibilidade de um encontro definitivo numa cidade desconhecida.

Longa jornada... A autora mostra interesse nas confissões do personagem, faz algumas indagações sobre os seus anseios. Afinal, o que seria a mulher ideal? O que ele esperava de uma relação a dois? Seria possível o encontro definitivo?

O homem se retrai, assusta-se com o interesse da companheira de viagem, não sabe responder, aprendeu apenas a desabafar...

Ele pega novamente a maleta e toma um comprimido para dormir. Também tem insônia. Fecha os olhos. Sua expressão continua tensa, iluminada pelas falsas luzes. Logo começa a roncar com a cabeça caída sobre o ombro. Talvez seja a rinite.

A autora perde o sono. Tenta em vão encontrar um desfecho para o enredo. Finalmente encontrara seu personagem, contudo estavam condenados a uma longa jornada noite adentro sem a certeza de um final feliz ao amanhecer.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 17/05/2005
Código do texto: T17584