Uma sociedade: duas misérias (o fruto de um Brasil que virou Brasis)

Pelo que me parece, as pessoas não entendem direito porque andam tendo tanto medo de sair pelas ruas. Meio que instintivamente fecham o vidro do carro ao se aproximar do semáforo. De canto de olho evitam olhar a molecada que pede grana (pra quebrar um pouco o gelo, os garotos estão se especializando em malabares flamejantes!). Quer dizer, isso quando param no semáforo.

Essa paranóia do medo faz com que as pessoas evitem sair de casa. O mundo da rua se distancia do mundo do lar. A dicotomia lar/rua é entendida como proteção/perigo. Ao transpor a porta de casa para a rua, surge uma sensação de incerteza quanto ao retorno. “Será que volto vivo hoje? Deus que me acompanhe!”. A rua é o mundo de pessoas feias, perigosas, suspeitas. Então é preferível ignorá-las.

O burguês ou pequeno burguês; aquele que tem grana pra comprar carro novo, com tanque cheio, não vai nem até a esquina a pé. Imagina só, “a pé!?”, claro que não, afinal pra que comprou o carro, oras? Mas, nas raras vezes que sai a pé, muda de calçada pra não ter que sentir o mau cheiro dos mendigos. Ou pra evitar passar perto de “suspeitos” (preciso fazer uma descrição da aparência desse “suspeito”? acho q não precisa, né!?)

E se é difícil andar a pé, imagina de ônibus! Isso não quer nem saber de usar, “tá maluco!?”. Demora. É lotado. Tem muita gente pra pouco espaço. O cara (ou a princesinha...) não pode se imaginar tendo tanto contato com aquele tipo de pessoa. “Pessoa que pega ônibus! Como pode?”, pensa.

A rua da favela, evita. Mora bem longe dela, nem conhece a periferia. Será que já foi lá um dia? Talvez sim... Pra comprar um pó... Mas se não foi, talvez conheça alguém que já foi e nem saiba disso. Talvez o próprio filho tenha ido. Ou um sobrinho querido. Ou algum amigo.

A vida do burguesão é quase sempre movimentada; reuniões no trabalho, festas de amigos ou parentes; e toda sorte de eventos da sociedade: socialite. A do pequeno burguês não é muito diferente, só um pouco mais humilde, “mas um dia ainda chego lá”, profetiza com fé. Da vida do povão, daqueles que usam avental e macacão, compartilha pouquíssimas ocasiões. O Carnaval, a Copa do Mundo! Mesmo assim em camarotes chiques, VIP’s, bares de elite.

Televisão não assiste. Não dá nem pra imaginar o Datena naquela telona de plasma com trocentas polegadas, mostrando homicídios, estupros, incêndios, enchentes, acidentes: diretamente do helicóptero. Mortes ao vivo? Não, definitivamente não vê nada disso.

Costuma ouvir histórias de seqüestro – já aconteceu com alguns de seus amigos. Por isso morre de medo. O carro é blindadão. Pode até levar tiro de AR15 que não acontece nada. “Nossa, isso não arma de guerra!? Meu Deus...”

E agora, esse negócio de invadir prédio residencial em bairro nobre, em Moema, Morumbi. Preocupa-se. Cidadão de bem, dormindo sossegado e, de repente, um cara com uma meia fina na cabeça, mandando todo mundo pro chão. Procurando jóia, dinheiro, eletroeletrônicos... “Putz, aonde chegamos”... Às vezes se pega refletindo sobre essas escabrosidades.

Sua realidade é cercada de muros, grades, de ruas particulares. Mas, ainda assim, faz o caminho de casa atento. Pensa consigo que toda essa maldade não tem hora pra acontecer. É sempre de surpresa, alguém esperando na espreita, na próxima esquina, na porta da garagem. Isso é terrorismo. Terrorismo psicológico.

Mas não é justo! Tanto esforço na vida; a melhor Universidade da cidade; educou os filhos nos melhores colégios. Além de tudo, compra um montão de cestas básicas pra distribuir no Natal. “Precisamos ajudar os necessitados”. Uma pessoa tão boa... “Que vida é essa, meu Deus!?”

Mas afinal, de onde vem tanta miséria? Por que as coisas parecem estar sempre piorando?

As aulas de Sociologia na Faculdade são um tédio, então não prestava atenção nas aulas sobre a Acumulação de Capital, que um tal Marx escreveu há muito tempo atrás. Não vê nada de mais em sempre querer mais. Isso é tão normal hoje em dia. “Não é natural?”

Mais, sempre mais mais e mais...

Os papos com seus pares sempre giram em torno de quem faz mais baladas, quem gasta mais dinheiro, quem faz mais sexo. Falam sobre as maiores bebedeiras, maiores carreiras... Isso acontece nesse mundo onde é normal ter sempre o melhor celular, o melhor carro ou o melhor sei lá o que; enfim, ter tudo do bom e do melhor (entendendo melhor como o mais caro, lógico).

O que acontece é que todo esse luxo encanta, e enquanto todo esse consumismo enriquece a eles mesmos, outros observam e admiram tanta beleza. Admiram os carros (quase sempre importados). Admiram as casas (“tão parecidas com as das novelas, né!?”). Admiram, enfim, o magnífico mundo brilhante estampado em Caras ou na novela das oito. E é tanto brilho, que chega a ofuscar a visão de quem vive sem perspectivas. Ofusca o lixo por trás do luxo. E o pobre coitado que a burguesia ajuda no Natal, as famílias carentes que moram na favela, se entregam aos mesmos desejos de consumo. Aceitam o papel de seres inferiores que o playboy caridoso insiste em fazê-los crer que são.

Não são! São socialmente diferentes, mas igualmente humanos! E não é por não viver a ilusão do luxo que devem aceitar a condição de subhumanos. Ser milionário não significa nada, a não ser que o sujeito faz parte de uma cultura dominante que preza a ilusão de participar de uma classe superior.

Superior a que, oras!? E a quem!?

E digo mais, se existe uma classe favorecida, é a custa exatamente da força de trabalho e do consumo das classes ditas menos favorecidas. Por exemplo: quem é mão-de-obra das plataformas petrolíferas? Quem abastece os carrões zerinhos nos postos de gasolina? Quem monta os carros utilizados pela elite? Quem asfalta as ruas onde desfilam esses sujeitos?

E mais: quem serve o scotch que eles consomem em suas baladas? Quem limpa o chão depois que eles saem? Quem toma a cerveja e o refrigerante que eles produzem em suas indústrias? Quem compra nas lojas dos shoppings que eles constroem na periferia? Quem consome tudo que eles propagandeiam no intervalo comercial do Faustão, do Gugu e do futebol? Quem é que vive a vida de verdade? Quem é que rala pra desfrutar o mínimo da ilusão produzida por esses senhores, que vivem em conluio com o poder do país? Coitado uma ova, sangue bom!

Acontece que uns armam a armadilha e os outros caem nela.

Agora está com medo de sair na rua, porque tem uns loucos tocando fogo em ônibus. Ora essa! Quem está na linha de frente dessa batalha, defendendo seu patrimônio? São os assalariados policiais, provenientes da mesma classe social daqueles que ateiam fogo nos ônibus. E diga-se, em ônibus dessa rede precária de transporte público que privilegia o cidadão que anda de carro isolado do resto do mundo pelo insulfilm.

A miséria que as classes mais favorecidas pelo modelo burguês tanto evita olhar pelas ruas ou pela televisão, também existe em seu mundinho colorido, perfumado, glamourizado. Há muita miséria no meio que a elite freqüenta. A diferença é que a miséria do luxo é uma miséria encoberta pela ilusão que o dinheiro pode comprar. Tem acesso ao paraíso, entorpecido por drogas refinadas, de primeira. Alienação confortável. Mas alienação.

A outra miséria, aquela do lixo, não tem todo esse glamour. Nessa, apenas restos e esmolas. Não tem nem empregos. Tem as drogas pra vender e pra comprar (setor forte da economia, não!?). Mas, não drogas refinadas. Não estou falando de Prozac e Blue Label. Não, nada disso. Tô falando de erva, quando não um solvente ou um saco de cola, cocaína com bicarbonato. Cachaça barata. Cerveja. E tudo continua na mesma. São dois lados da mesma moeda. São dois aspectos criados pela mesma sociedade da ganância, do desejo, da inveja, da obsessão, do apego material... Do consumo. Conclusão filosófica: Consumo, logo existo. O negócio tá ficando feio. Cadê o incentivo a cultura? À educação? E que educação é essa que oferecem pro povo? E por que o povo não se mexe? Já estou cheio desse povo dividido e preconceituoso.

Até mais.

Leonardo André
Enviado por Leonardo André em 05/07/2006
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