Portais

Todos se encantam com a primeira palavra, a princípio ininteligível, de um bebê. Os pais, a família, amigos e até estranhos param o que estiverem fazendo só para ouvir o aviso de que um pequeno quer fazer parte desse mundo regido por substantivos, adjetivos, verbos, preposições, artigos, interjeições, pronomes, numerais, advérbios e conjunções.

A admiração ao ver um criança arriscando seus primeiros passinhos é muitas vezes maior do que a de assistir a uma palestra ministrada por um doutor em física quântica.

Mas infelizmente temos que lidar com a situação oposta. A última palavra. O último gesto. O último sorriso.

É fato que, quando se está doente, a proximidade da morte é, digamos, pressentida. Apesar da angústia e dor, tanto dos familiares quanto da própria pessoa, há tempo para palavras nunca antes pronunciadas, sonhos ainda não concretizados, declarações deixadas de lado, emoções ainda não vividas.

Porém, fazem parte de nosso cotidiano casos em que se está com perfeita saúde numa manhã de domingo e, horas depois, tem-se um infarto, uma parada cardíaca. Depois que acontece, é comum ouvir consolos do tipo “era a hora dele” ou “foi para um lugar melhor”. Independentemente de crença, nada tirará das mentes de quem ficou registros da última vez em que viram a vítima do destino incompreendido.

Se realmente é assim, o que fazer se essa for a última hora, com quem falar, o que dizer, onde estar?

Poderia ficar em casa em plena segunda-feira, tomando sorvete o dia todo. Mas as pessoas que mais ama não entenderiam e seguiriam seu dia normalmente. De nada adiantaria se não pudesse ficar ao lado delas.

Pensando bem, é egoísmo. Estas últimas palavras e conquistas poderiam mudar a vida de outras pessoas. Um discurso, talvez. Não, também não é boa idéia. Tudo cai no esquecimento nesse país, ainda mais um anônimo invadindo o Congresso.

Ir ao cabeleireiro e se arrumar como nunca é uma alternativa interessante. Mas levantar da cama, não desembaraçar os cabelos, nem lavar o rosto, andando nu pela casa também parece atraente.

Aproximar-se de quem sempre teve medo e gritar a plenos pulmões que é capaz de enfrentá-lo. Bradar impropérios a quem nunca suportou cruzar na rua. Encarar os olhos do reflexo no espelho. Dizer “eu te amo” para quem sempre insistiu em afastar.

Embriagar-se para não ver o fim chegar ou estar lúcido diante de tudo, a fim de lutar até ser impossível vencer?

Legal seria quebrar todos os relógios a vista, ou quem sabe, colocar um de pulso e contar os minutos para que tudo acabe mais depressa.

Sorrir tragicamente na hora fatal ou manter a serenidade? Olhos fechados esperando ou arregalados vigiando?

Será que quer passar seus últimos momentos lendo todas essas indagações que aparentemente não levarão a nada? Talvez tenha alguém para visitar, um amigo ou sua avó que não vê há anos, uma pessoa que precisa de um abraço ou mesmo seu cachorro implorando por um passeio.

Sempre haverá algo a realizar. Os caminhos podem ser sinuosos, possuir tantas curvas que não conseguimos enxergar o que está vindo do outro lado. Vivemos à sombra da dúvida. Tudo se pode encontrar ao virar uma esquina. Dinheiro (para os que têm sorte), um novo amor (ou reencontra um velho), um amigo de infância (aquele que você não vê há anos), um assaltante (por que não?).

Talvez seja presunção humana tentar desvendar esses mistérios. Há pessoas que dizem ter o dom de realmente prever os acontecimentos. Outras se aproveitam de gente ignorante, oferecendo um mundo que pareça melhor.

Mas a única certeza que temos é de que a vida chegará ao fim. Hoje, amanhã, semana que vem, daqui a 20, 30 anos. Eis uma das poucas verdades incontestáveis. Depois da morte, aí sim, há teorias e teorias sobre o que acontece. Mas ninguém pode negar que um dia ela chega, mansa ou violenta.

Tortura seria viver sob essa nuvem tão densa de dúvidas. Não daria certo se numa segunda-feira, chuvosa, centenas de pessoas não fossem trabalhar e resolvessem ir tomar banho de chuva em cima do pão-de-açúcar.

Ou se todo mundo gritasse pelas ruas o que achassem das pessoas que cruzassem seu caminho. E ainda se todos os funcionários de uma empresa resolvessem almoçar a hora que quisessem.

E se nada acontecesse? Com certeza essas pessoas deveriam explicações a alguém. O que alegar, medo de morrer?

É preciso, sim, aproveitar os momentos de prazer, de dizer palavras duras ou doces, mas de maneira que se possa continuar vivendo no dia seguinte. A morte é certa, mas o dia em que ela bate à nossa porta não está marcado numa agenda ou num pedaço de papel amarrotado dentro do bolso, correndo o sério risco de ir para a máquina de lavar.

Por outro lado, agir como se estivesse em tempo geológico não é uma opção inteligente. As prioridades que adotamos no dia-a-dia são curiosas. É comum ver pais correndo de um lado para outro por causa do trabalho e não ir levar o filho para seu primeiro dia de aula.

Quando decepções acontecem, só sabemos olhar para dentro de nós mesmos. O exame de si mesmo é essencial para o autoconhecimento. Mas ninguém consegue conviver com um eu ferido durante muito tempo. Afastamos pessoas que só esperam por um sorriso nosso com as lamentações de que nos sentimos sozinhos.

A maioria das pessoas hoje vive nas cidades. Mas todo mundo tem aquele parente, mesmo distante, que mora sem sítio ou fazenda. Por que tanta resistência à natureza? Encontrar um programa na televisão sem conteúdo apelativo é muito mais difícil do que entras nas águas claras de uma cachoeira!

A felicidade está em muitas portas que se escancaram a nossa frente. Só há um problema, essas portas nem sempre são do nosso tamanho. E aí, nos restam três opções: entramos abaixados, espiamos pela abertura ou as ignoramos.

O que acontece com mais freqüência são as duas últimas opções. É mais fácil lamentar, culpar outras pessoas e até Deus por nossa própria escolha de virar as costas para a porta da felicidade. Comum também é ficar, como dizem, “em cima do muro”. Estamos diante do problema, visualizando a solução, mas falta coragem para ir à luta, abaixar a cabeça e entrar pela porta.

No entanto, se escolhermos a terceira opção, as costas no inicio podem se manifestar um pouco. Mas depois, entenderemos que sacrifícios são necessários e que a felicidade total e eterna é pura invenção humana. Sempre haverá portas trancadas.

Quando perdemos algo, esquecemo-nos de procurar no lugar mais óbvio. As chaves estão dentro de cada um de nós. E, para alguns, são a última palavra, o último gesto, o último sorriso.

Maria Flor
Enviado por Maria Flor em 14/07/2006
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