Enquanto estudava em meu quarto, principalmente nos finais de semana, me distraía de vez em quando com o "tom alterado" da voz dele (pra não dizer grito), ensinando ao meu irmão mais novo.

Sem querer eu me desconcentrava e ficava ao mesmo tempo curiosa com o que dizia e com pena de meu irmão, que, aos meus olhos, tinha um problema maior do que apenas falta de atenção.

Hoje eu sei que essas coisas tem nome (tudo tem nome hoje em dia), porque sofro com meu filho com diagnósticos diversos (TDA, TDAH, Síndrome disto, Síndrome daquilo e por aí vai....), mas naquela época (calma aí, não sou tão velha assim), achavam apenas que a criança era preguiçosa, desatenta, burra, desinteressada, malandra e etc.

Mas o que me preocupava era o seu futuro. Às vezes, no limite da paciência, ouvia minha mãe dizer:

- Vai ser o que quando crescer? Vai puxar carroça?

E o meu pai ia além quando "pipocava" (aliás, ele não tinha a menor paciência para ensinar). Dizia irritado:

- O que você quer? Comer "merda em caco de espoleta" quando crescer?

(perdoe-me o termo, mas era isso mesmo que ele dizia, nunca esqueci, com a sua peculiar psicologia).

Bem, minha imaginação, muito fértil e já completamente desconcentrada do estudo, ficava pensando em meu irmão, tadinho, puxando carroça, suado, de bermudas rasgadas...

Mas peraí, comer "merda em caco de espoleta" já era demais. Como imaginar isso? Mas eu imaginava...

Suadinho, bermudas rasgadas, recolhendo lixos e pelo meio achando "cacos de espoleta". Juntei tudo. Tava ferrado mesmo. Mas e a merda? Comeria embaixo do sol quente, quando a fome apertasse e não tivesse nem um tostão pra comer?

Merda de bicho ou de gente?

E ia embora com minha história... quando de repente minha mãe batia na porta:

- Tá estudando filha?

Mas eu já estava fazendo capítulos da frase delicada do meu pai. Ele era gente boa sim, um pai maravilhoso, mas não ensinando ao meu irmão...

Quando terminava os estudos, eu passava por ele olhando-o com pena e ele perguntava:

- O que foi?

- Nada não...

Acho que por isso comecei a trabahar cedo, morria de medo de "comer merda em caco de espoleta".

Meu irmão? Nunca foi bom estudante não, mas até hoje não puxou carroça nem comeu esse trem aí (ainda bem, né?).
Não que puxar carroça seja indigno, mas não é exatamente o futuro que os pais planejam para os filhos.

Hoje, denominaria seu caso como "TTCMCE" (Transtorno de Trauma de Comer Merda em Caco de Espoleta).

Bem, apesar de tudo, ele não fala "menas", nem "adevogado", nem "muitho", nem "sôo", nem "iorgute", o que já é alguma coisa.



TACIANA VALENÇA
Enviado por TACIANA VALENÇA em 25/11/2009
Reeditado em 25/11/2009
Código do texto: T1943123
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