VIDAS VIRADAS, VIDAS TROCADAS

VIDAS VIRADAS, VIDAS TROCADAS

Não sabia ao certo, ou melhor, sabia superficialmente, as suas origens, isto é, a proveniência e tudo o que sabia é que eram oriundos da província do Algarve e apenas isso. Mais não sei e tudo o que deles vim a saber é pela vida a que se expuseram e por tudo aquilo a que a minha observação me transmitiu. Na verdade, aqueles dois humanos, homem e mulher, casados ou enamorados, calcorreavam em passo molengão as ruas citadinas da urbe bracarense. O aspecto dele indicia mais juventude, na casa dos quarenta e poucos, bem cuidado, bigode aparado, roupas ataviadas e bem coloridas, botas tipo mexicana e andar aperaltado. Ela, nem tanto, talvez pelo seu aspecto pesado e menos cuidado ou pela farta cabeleira de cãs que lhe cobriam a cabeça a indiciar uma idade próxima do meio século. Era este o aspecto geral que ambos me transmitiam. Este dueto por muito tempo se fez companhia solitária e solidária. Ela e não ele, abeirava-se dos transeuntes e pedia e pedia sempre, dizendo que era para uma sopa. Claro que nem sempre eram atendidos e eu próprio também não me predispunha sempre a colaborar. É assim. Tem dias que sou mais generoso que noutros. Acho que as outras pessoas também são assim…

Até que um dia, o dueto cresceu. Não, não nasceu nenhum bebé dessa relação, apenas se lhe juntou uma nova companhia. Uma moça viria a ser o terceiro elemento. Esta sim, com aspecto geral merecedor de observação mais atenta e porquê? Porquê? por ser muito bonita e com linhas femininas muito bem definidas, digo eu. É verdade. Eu perguntava-me, o que terá sucedido àquela moça para cair na rua e ter engrossado o número dos Sem-abrigo? Perda de emprego, divórcio ou outro menos provável ou algo que escapa à minha observação? Bom, também é verdade que não tenho que saber as razões para o que lhe terá sucedido, mas tampouco questionar como o mundo poderá ser ingrato para qualquer pessoa, mesmo quando o aspecto geral nada nos indiciara. Não sei, nunca soube e talvez nunca o venha a saber, mas também não é importante. Facto, facto, é que ela está na rua e é vê-la feliz por ter encontrado novos amigos. Feliz, digo eu, a testemunhar pela forma como andava airosa e de sorriso fácil. Quero crer que era uma mulher solitária ou que terá ficado solitária ou até que terá passado por grandes privações afectivas e quiçá provações e que terá encontrado naquele duo o que há muito lhe faltara: afecto. Certo estou, de que ela se sentia positivamente, mais feliz, a atender ao que me era exteriormente observado. Para mim, tudo era muito estranho nela, tendo como ponto de referência os Sem-abrigo que conheço ou que a sociedade nos mostra. Eu nunca tinha visto uma mulher “Desabrigada” bem maquilhada, cabelos muito bem cuidados, elegantemente vestida e aragem feliz. Este “filme” de mulher é normalmente, atribuído a prostitutas, com o meu perdão e respeito por estas. Sim, é o que o comum cidadão pressagia em face daquele visual. Até nisto somos injustos ao estereotipar pelo aspecto os nossos iguais, como se cada um de nós não pudesse andar como gosta sem se parecerem com o que não são. Bom, voltando à nossa observação justa ou injusta, pergunto-me, será que ela encontrou na rua, o que lhe faltou no seu dia-a-dia? Provavelmente… Dava show de encanto e espanto para mim e quiçá para outros observadores tão atentos como eu, no mínimo. Lá teria as suas boas razões e por isso eu talvez esteja a ser injusto ao “querer” que todos os Sem-abrigo tenham aspecto desleixado, indigente ou então, eu não esteja em sintonia com a nova “moda” de Sem-abrigo, bem vestidos, aspecto aprumado e apurado, ou então, a não perceber que toda a regra tem sua excepção.

Que bom seria se a regra se fizesse excepção ou que o aprumo se fizesse “moda” e os Sem-abrigo deixassem de ser catalogados como estereótipos e pudessem ser tão iguais quantos os “outros” e não serem olhados como “marginais”, mas como acidentados da vida e com os mesmo direitos. Estas considerações pouco importam para o que viria a acontecer. Na verdade, o trio funcionou como uma sociedade sólida por algum tempo, mas acabaria por trazer ao de cima as vicissitudes das ditas verdadeiras sociedades e de revelar as enfermidades que as apoquentam, diluindo-se. Constatou-se que a dita sociedade de amizade terá esgotado o seu tempo útil de vida e findo esse período, uma das partes terá denunciado a sociedade ou algo que me escapa. Perante esse facto, a minha estranheza na diminuição do número de elementos do grupo despertou em mim alguma curiosidade. Viria na sequência a saber que o elemento masculino e o mais novo do grupo se teriam ausentado para parte incerta. Percebi agora o motivo para tanta e tão boa e cuidada apresentação de ambos: a paixão andava no ar.

Pergunto-me, como foi possível eu ter observado tantos pormenores da vida dos três e nunca ter visto o que o coração espelhava: O AMOR. Verdade; “O coração tem razões que a razão desconhece” e para um terceiro como eu, ainda mais…