Quem sabe França, mon amour

Meu bem. Escuta. Eu estou indo.

Estou indo agora.

Não pergunte.

E não finge que não quer perguntar.

Queira perguntar:

Gritar, segurar e me fazer sangrar as entranhas e a pele. Queira meu bem queira que eu fique, mas não vai adiantar, porque estou indo.

Os olhos deste daqui doem, estão cansados, as pálpebras comicham, como se eu não dormisse há muito tempo. As costas doloridas pedem cama, consolo, analgésico para cavalos. O coração sofre de uma coisa sem nome, apertada-ofegante em frangalhos.

Não se partiu, está inteiro. Doendo. Dói sem ter sido abandonado, ele dói mesmo já tendo amado e sido amado, dói parecendo dor pouquinha, mas é tanta dor pouquinha que machuca.

Meu bem – meu bem você não existe, e essa é dor pouquinha.

Mas não é solidão; não dói chegar em casa para os pratos sujos do café da manhã e para a cama desarrumada que não houve tempo de fazer. Não. Simplesmente é isso. Estou indo porque quero deixar este tudo irremediável. Este tudo tão grande da minha cidade que é meu mundo. Esse tudo tão grande que é tudo que eu sei e não é nada perto do tudo que eu não conheço ainda. Estou indo.

Vem atrás.

Puxa-me pelo braço. Faz hematomas, arranca pedaço. Arranca os meus cabelos. Com força. Quebra o vidro do meu carro, este que você corre para alcançar, fazer parar, fazer ouvir. Grita por mim. Chama meu nome, chama quem sou, chama os defeitos, os palavrões, meu macarrão duro, meu arroz queimado, minha baixa auto-estima. Diz que quer tudo: reclamações, preguiça, incompreensão. Diz que quer a minha humanidade. Diz que aceita o que tenta ser inteiro a cada dia despedaçado por barulhos, tráfego, relógios, afagos vagos, desesperanças sutis e pensamentos suicidas bem discretos.

Meu bem escuta. Olha os prédios, os fios, o trânsito. O pedaço do céu e o pedaço de grama que dá pra ver entre o cinza. O tudo que eu ainda não sei é além deste tudo de agora.

Deixa os olhos abertos, atentos. Limpa a garganta, deixe-a pronta a chamar. Por mim. Estou indo agora.

Só para que seja mais bonito.

Anna P
Enviado por Anna P em 29/07/2006
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