De quando alguém morre

A primeira vez que vi um paciente morrer, foi no meu primeiro dia de contato com o hospital, no quarto ano. Foi chocante, mas aceitável. Ela era idosa, com problemas cardíacos e já tinham feito de tudo para salvá-la.

O meu primeiro paciente que morreu, foi mais marcante. Seja por ter sido meu primeiro paciente, ou por ter morrido aos meus cuidados.

Ele era alcoolatra, não conseguimos todos os cuidados necessários, por problemas burocráticos (por ser SUS). E morreu sangrando pela boca. Foram várias horas de agonia. No começo, enquanto ele ainda estava consciente me perguntou:

_ Doutora, eu vou morrer, não vou?

Eu não sabia o que e nem como responder. Senti todo o peso da vida dele nas minhas costas. Porque eu sabia que ele ia morrer. Porque ELE sabia que ia morrer.

Gostaria de ter voltado aos anos do ensino básico e exigir uma aula sobre isso. Mais especifica do que aquelas aulas de piscologia.

É, acho que não se ensina isso. Como dizer a alguém que ela vai morrer.

Vieram muitas mortes depois. Mas eu lidei melhor. Aceitei melhor. Sofri menos. Infelizmente o ser humano se acostuma à tudo.

Ontem, foi diferente de tudo isso.

Eu estava naquela cesarea, de madrugada. Eu já sabia do desfecho. Mas estava tão cansada, que na verdade não tinha pensado no real significado de tudo aquilo.

Mais especificamente, eu estava auxiliando meu professor. Ele retirou o feto, enrolou em uma toalha e chamou para a enfermeira pegá-lo. Ela demorava. Ele, não podia esperar, tinha que salvar a vida da mãe.

Jogou o bebe em cima de mim. Ele estava perfeito, exceto que não respirava.

Quando um criança nasce, minha expectaviva é sempre pelo choro. Aquele chorinho gostoso, de quem respira pela primeira vez e o pulmão deve arder para caramba. Porque é assim que tudo começa.

Mas ali, não havia nada.

De repente, todo mundo se virou para mim. Virei um ponto frágil naquilo tudo.

A enfermeira apareceu e eu o entreguei para ela.

Aquilo não estava certo. Eu queria começar a chorar como louca e sair correndo da sala. Então meu professor pediu enérgico:

_ Kelly! - (uma pinça para ajudar a conter o sangramento)

Segurei o choro. E continuei ali. Porque era necessário. Tinha outra vida em jogo.

Depois que tudo acabou, acompanhei a mãe até a UTI. Que destino péssimo...

E me perguntei pela enésima vez o sentido de tudo aquilo.

Por que eu estava ali afinal?

Pra que estou fazendo tudo isso?

Amar a medicina não basta. Querer cuidar do próximo não basta.

Continuei boa parte da noite massageando de tempos em tempos seu útero, para evitar que sangrasse, mas provavelmente ela nao vai acordar do coma...