O MENINO QUE VEIO DE MINAS

O MENINO QUE VEIO DE MINAS

Maria Teoro Ângelo

Quando eu nasci, ele já estava lá. Um molequinho mulato de cabelos sedosos e olhos arregalados num espanto constante pelo mundo. Na foto do meu batizado, além dos meus pais e padrinhos, lá estava ele bem colocado como personagem importante que era, sempre foi e será.

Num dia quente e ensolarado de fim de ano, minha avó, com os olhos postos na máquina de costura, tentava dar conta das encomendas que não paravam de crescer. De vez em quando olhava através da vidraça de onde descortinava uma vista privilegiada de toda a praça.

Não foi então que a figura de um homem de terno e chapéu, carregando algo nos braços surgiu no ponto mais distante que ela podia enxergar e veio se aproximando? Minha avó sentiu um arrepio, uma ansiedade e uma súbita alegria. Largou a costura e correu para a porta numa premonição inexplicável de que sua vida iria mudar.

`A medida em que a distância diminuía, ia tornando-se nítida a figura daquele amigo de Minas, que trazia nos braços uma criança recém-nascida. Enquanto ele explicava que a mãe morrera no parto, minha avó abriu os braços e tomou para si aquele ser tão pequenino.

Sozinho e sem recursos, o homem estava trazendo o filho para a amiga criar. Despachada e prática, ela lavou, vestiu, alimentou, educou e amou aquele menino. Não houve resistência da família. Os filhos já crescidos estavam acostumados a cenas parecidas. Meu avô, seguidor da doutrina espírita, interpretou como mais uma oportunidade de praticar o bem, resgatar os erros do passado e promover o espírito.

O menino foi ficando, amado por todos. Pelos irmãos que viraram padrinhos, pelo papai e mamãe como fora ensinado a chamar os meus avós. Sem adoção formal, esse compromisso de amor e aceitação era selado pelo sentimento recíproco que os unia. Foi crescendo sem traumas, feliz e sabedor de que tinha um pai distante. Nunca, em momento algum, minha avó apagou daquela cabecinha infantil o amor e o respeito aos pais que não puderam criá-lo. O pai vinha de tempos em tempos ver o filho e achando-o bem, afastava-se e sumia pelos sertões de Minas. As visitas foram se espaçando, rareando até que nunca mais veio.

O menino sempre foi nosso e sempre lhe coube a maior porção de todo amor que pudemos lhe dar. Minha avó o protegeu mais do que aos outros filhos, mimou-o o quanto pôde e ele não se perdeu. Fez-se homem, estudou e o carinho exagerado só o tornou mais amoroso, mais sensível, mais confiante e mais capaz.

Nunca pudemos vê-lo como alguém que tivesse vindo de fora. Ele era parte de nós, era tão nosso, que até nos esquecemos de onde viera. Quando nos apresentava como sua família, a sensação que tínhamos era de graça plena por ele nos ter adotado.

Se não bastassem todos esses ingredientes para escrever a história de uma vida, chegou, certo dia, uma carta de Minas. O pai havia morrido e uma fortuna razoável em terras e dinheiro estava à espera do único filho que ele tivera na vida.

Meu tio, agora já casado, rumou com a família em busca da herança e por lá ficou. Nossos laços se estreitando mesmo com a distância, os encontros sempre emocionados e a vida seguindo os rumos que tinha de seguir.

Tudo o que pude viver como personagem secundária dessa história me fez ver que nada disso teria acontecido se não fosse a coragem de minha avó de ter podido, enquanto viveu, amar e ser amada por alguém que não estava na pauta dos acontecimentos previsíveis.05/07/2002