Sebo-Sampa: Onde tudo acontece...

Um colega de trabalho, certa vez, protagonizou em palavras a melhor definição que eu já ouvi sobre a capital São Paulo: "Sampa, onde tudo acontece!". Na ocasião, conversávamos sobre a maior cidade do país, tendo o gostoso papo regado à cerveja e torresmo. Falamos do trânsito infernal e perigoso, sobre as casas, bares, shows, eventos, ruas, pontos turísticos, opções, e também sobre a violência. Na época os ataques criminosos eram apenas 'hipóteses', como sugeriu um certo político. Enfim, em minhas andanças pela capital, sempre arrumei um jeitinho de ir a algum lugar novo, traçar outro roteiro, conhecer novas pessoas, rever os amigos e parentes, etc e tal. Na época da prosa, trabalhávamos juntos e íamos constantemente (quase que diariamente) para São Paulo, prestando serviços para empresas de Itapira, Mogi-Mirim e região. Em uma dessas viagens, com destino ao Ministério da Agricultura, na rua Treze de Maio, Bela Vista, deparei-me com faixas e cartazes pendurados no portão trancado. O órgão estava em greve, e, segundo o segurança, se eu desse sorte poderia ser atendido em outro setor que não havia aderido a paralisação, porém, somente após as duas horas da tarde. Bom! Telefonei para a empresa que aguardava a liberação dos documentos para exportação de alimento animal e expus os fatos, sendo autorizado a esperar o quanto fosse necessário, e se preciso, até a me hospedar em algum hotel pelas redondezas, que eles se responsabilizavam pelos custos. Agora sim, ótimo! Passava das nove da manhã. Primeiramente, como já estava acostumado a fazer, fui até uma banca de jornais, na rua João Julião. Ali, comprei um 'Agora São Paulo'. Sou um leitor compulsivo. Sentei num banco da pracinha em frente e folheei o diário. Ah! Que saudades no 'Notícias Populares'. Adorava ler o polêmico e cômico jornal. Agora eu lia seu sucessor. Li as principais manchetes e 'doei' o jornal a um agente da CET que estava próximo. Caminhei até o Shopping Paulista. Ali, tomei um café horrível e comi um pão de queijo. O lugar era muito requintado, por isso não pedi um pão na chapa. Sempre faço essas coisas idiotas. Acabo gastando demais. E só depois que saio é que percebo que bastava atravessar a rua e tomar um lanche naquele boteco de quinta, mas que serve um pingado dos deuses, por metade da metade do preço cobrado no shopping.

De qualquer forma ainda tinha muito tempo para andar por ali, mas não tinha idéia de onde ir. Passei a mão no celular e liguei para um amigo:

-Alô! Clóvis? Aqui é o Fernando... de Itapira...

-Fala Pinna's! Como está você? Tudo certo?

-Sim, tudo bem. Escuta, estou na sua terra... lembra daquele Sebo que você havia me falado? Onde é que é mesmo?

-Claro que lembro! É lá embaixo, na esquina da Brigadeiro Luiz Antonio, pertinho do viaduto Dona...

-Ah! Sim... é lá mesmo! Estou indo pra lá, tá afim?

-Puxa rapaz, nem vai dar... tô cheio de trabalho aqui em casa... porquê você não vem pra cá? Vem almoçar aqui...

-Vixe! O que gasto de combustível até aí dá pra pagar um belo rango aqui no centro... mesmo assim, obrigado.

-(Risos) É verdade mesmo... de qualquer maneira, o convite tá feito!

-É sério, agradeço mesmo, mas deixa para a próxima, quando eu estiver mais perto daí.

-Ok! Forte abraço.

-Obrigado. Igualmente... até mais.

Posso até ter exagerado quando disse que gastaria muito combustível pra ir até sua casa. Afinal, eu estava de moto, que é super-econômica. Mas o fato é que é longe pra burro. Lá pras bandas da Penha... em Cangaíba. De qualquer forma, não estava nem um pouco afim de enfrentar o trânsito da hora do almoço. Eram dez e meia e decidi ir até o tal Sebo, a pé mesmo. Estava afim de caminhar um pouco, afinal, já havia enfrentado quase duzentos quilômetos naquela manhã. E ainda tinha a mesma distância para percorrer na volta.

-Bem que podia ter um metrô direto pra Itapira! - pensei. Era o típico pensamento idiota, mas me diverti um bocado com a hipótese. Fiquei imaginando o trem saindo da Barra Funda ou do Tietê mesmo, e fazendo parada apenas em Jundiaí e Campinas. Depois chegava até a antiga Estação da Fepasa, onde eu desembarcaria e tomaria o ônibus para o Bairro dos Prados. Seria ótimo. Fiquei um tempo pensando nisso. São coisas que a gente pensa quando tem que esperar e não tem o que fazer. Cheguei a rir com isso tudo, e um casal que estava parado num ponto de ônibus ficou me encarando. Com toda certeza devem ter pensado que eu era maluco. E então eu dei risada pra valer. Cheguei a gargalhar olhando para eles, que disfarçaram e cochicaram algo. Continuei caminhando por algum tempo e logo estava no Sebo. Trata-se de uma loja grande, lotada de discos, revistas, livros, e antigüidades que não acabam mais. É muita coisa mesmo. Acho que tinha uns mil relógios na parede. Todos parados. Tem de tudo que se possa imaginar. Objetos, coisas e mais coisas. Sobre tudo. Religião, música, sexo, negócios, etc, etc e mais um monte de etc...

Sentado sobre uma cadeira antiga, é óbvio, estava o que pensei ser o proprietário do local.

-Bom dia - puxei conversa - como vai o senhor?

-Humpf! - resmungou o barbudão.

-Eu também vou bem, obrigado. - retribuí com um tom irônico. Sou campeão em fazer isso. Essa é a grande diferença de se entrar em uma loja desconhecida, onde nunca esteve, e entrar em qualquer outro lugar onde alguém já te conheça. Quero dizer, de onde eu venho, as pessoas ainda se cumprimentam na rua, desejam bom dia e os comerciantes lhe tratam bem. Salvo algumas excessões, é claro. De qualquer maneira, continuei:

-Estou procurando por um disco, já antigo e bastante raro...

-Fala...- respondeu o simpático homem.

-Vida e Obra de Johnny McCartney.

-O que é isso?

-Um disco, ora. Do Leno...

-Sei lá viu... ô mãe... manhêêê!!!

Ah! Era só o que me faltava... essa foi o máximo. Quase não me agüentei quando ouvi aquela figuraça de camisa cavada com estampa do Frank Zappa, e uma barba à la Ed Motta gritando pela "manhêêê...".

Olho para o canto do prédio, onde havia uma escada, daquelas de madeira, e como não podia deixar de ser, bem antiga. Ouço o assoalho de uns duzentos anos ranger, e uma senhora aparece, com cabelo curto e grisalho e bastante sorridente. Trazia consigo algumas pastas embaixo do braço. Sim, algumas pastas bem velhas, com as capas detonadas.

-Bom dia! - disse-me a mulher, depositando as pastas sobre o velho balcão.

-Bom dia, respondi imaginando que o sósia do Ed deveria ser adotado - como vai a senhora?

-Muito bem graças a Deus. Em que posso ajudá-lo?

Definitivamente ela não poderia ser mãe biológica daquele careca com cara de poucos amigos.

-Estou procurando um LP do Leno. Vida e Obra de Johnny McCartney. Será que a senhora têm aí?

-Santa Mãe - exclamou a vovó - Faz muito tempo que ninguém procura por este disco...

O que é uma pena, pensei.

-Eu não tenho não senhor. Já procurou em outros lugares? - perguntou-me.

-Não. Este é o primeiro sebo em que procuro. É claro que era uma mentira cabeluda. Já tinha procurado em alguns lugares, mas me pediram o olho da cara pelo bolachão. E o pior é que vale mesmo o que me pediram. Conheço gente que pagou até mais.

-Olha só... creio que não será fácil de achar não. Já foi na Galeria? Na Baratos Afins?

-Não fui não... como disse, estou começando a procura por aqui.

-Desculpe, mas não poderei ajudá-lo desta vez. Mas deixe seu telefone, vou falar com alguns conhecidos e se souber de algo...

-Imagina... não há necessidade. Não mesmo, muito obrigado mesmo assim.

-Bom, você é quem sabe - disse a mulher, continuando: -De qualquer forma, estamos as ordens...

Puxa vida. Ela não poderia mesmo ser mãe do grandalhão. O tempo todo ele ficou com o nariz colado na tela do televisor. Digo televisor, porquê, pra variar, também era antigão. O fato é que ela era um doce de pessoa. Um anjo vestido de camisola e cheirando a Tabu.

Agradeci a ela e virei-me, para sair. Antes que eu ganhasse a calçada, ela ainda me desejou um sonoro "Boa sorte na busca". Já passava do meio dia. Na verdade, não era um disco tão antigo. Fora gravado entre o fim de 1970 e início de 71, porém só foi ser lançado vinte e tantos anos mais tarde, em meados de 1995. Não é um disco comercial, tampouco famoso. Mas é genial. Pretendo falar mais sobre este disco em breve, em outro artigo. De qualquer forma, voltei até o Ministério, que continuava fechado. Fiquei batendo um papinho com o guarda até bater duas horas. Nem fui almoçar. E na esquina da Treze, sentido Paulista, tem um restaurantezinho fabuloso e bem popular. Mas acho que aquele pão de queijo do Shopping não tinha me caído muito bem. De qualquer forma, o pessoal me atendeu e liberou a papelada. Saí do local quase quatro horas. Comuniquei a empresa de que tinha conseguido completar a tarefa e fui até o estacionamento e ainda pensei em dar um pulo na 24 de Maio e na Galeria do Rock, pra ver se conseguia encontrar e pechincar o tal vinil, e rever um grande amigo que possui uma loja de CD's e Fã-Clube do Zé Geraldo. Amo de paixão andar à toa pelo centro velho de São Paulo. É o Sebo-Sampa. Com suas obras arquitetônicas fantásticas e nostálgicas. E com tudo mais o que existe por lá. Quem conhece pode imaginar. Mas não fui. Com certeza ia demorar, e eu ainda tinha que enfrentar muito chão até minha casa. E naquele horário, deduzi, não tinha mais Metrô pra Itapira.

Publicado originalmente no Jornal 'Tribuna de Itapira'.

F. Pinéccio

27/08/2006