O OLHO DE VIDRO
O OLHO DE VIDRO
Maria Teoro Ângelo
Eu sei por que me lembrei agora do tio Carlito e do seu olho de vidro. Foi a saudade e assim explico tudo. Vindo da Alemanha, era o irmão mais novo de minha avó. Um acidente lhe custara o olho direito e esse olho nunca se fechava. Às vezes, tio Carlito fingia dormir para dramatizar algum fato que contava e o olho de vidro ficava lá, aberto, atento e inútil.
Todas as noites ele vinha para a nossa casa. Ia entrando porque as portas estavam sempre abertas. Quando a gente percebia, lá estava ele sentado à cabeceira da mesa da cozinha. Gostava de contar histórias de sua vida e, quando percebia o nosso interesse aumentando, ele carregava de tintas as palavras, aumentava o feito e introduzia detalhes. Eu percebia o exagero, mas para ele era a verdade que gostaria que tivesse sido.
A vida contada por ele, comentada e interpretada sob o seu ponto de vista era perfeita. Sabia como ninguém enxergar o lado bom e explicava a parte negativa com tanta propriedade, otimismo e esperança, que eu o invejava e esse modelo de olhar o mundo tentei imitar a minha vida inteira.
Tio Carlito era sozinho e sem fortuna, mas sabia ser generoso. Dava a todos nós um pouco de si, daquela riqueza interior que ele transformava em atitudes e palavras e que caíam sobre mim como um bálsamo que suavizava qualquer tristeza, qualquer medo, qualquer desafio.
Era um contador de histórias dos melhores e animava nossas noites. Às vezes inventava brincadeiras. Pegávamos um objeto qualquer e o colocávamos sob uma lâmpada . Pela sombra projetada no papel fazíamos o contorno e depois, olhando o modelo, pintávamos cisnes e andorinhas e tantos outros.
O tempo passava numa leveza tão fácil de suportar. A vida parecia ter sido feita sob encomenda porque o coração era feliz. Todas as noites ele era esperado e vinha. Trajava sempre, no frio ou no calor, um terno marrom-claro e trazia um assunto inesgotável. De qualquer coisa, de algo que nem percebíamos ele fazia a sua crônica diária.
Aos domingos vinha para o almoço e quando chegava fazia todos se reunirem num círculo e de mãos dadas dizíamos uma oração. Esses atos faziam com que tio Carlito crescesse ainda mais diante dos meus olhos.
Ele não anunciava a partida. Por mais animada que estivesse uma conversa, parava no meio de um assunto, levantava e saía. Tinha um tempo para ficar e ninguém insistia porque aquele era o seu jeito de ser.
Quando ele morreu, o olho de vidro continuou aberto no caixão como se ainda estivesse meio vivo. Naquelas noites , quando ele não mais veio, eu tive a impressão de que ele só tivesse partido sem preâmbulos, subitamente, como sempre fazia. Continuei a esperá-lo, em vão, por todos os dias da minha vida para que ele viesse continuar a história e trazer a fórmula para consertar os estragos que a vida faz em nós.