REVOLUÇÃO CULTURAL

Não, este título não faz apologia a Mao Tsé-Tung e os seguidores do famoso livrinho vermelho, aquele mesmo que transformou a China num verdadeiro mundo dentro deste Planeta e fez-nos meninos assustados diante do bicho-papão vermelho. Falo de uma revolução, um golpe de estado que aconteceu no último dia 05 de setembro. Neste dia, que coincidiu com um domingo chuvoso acompanhado de um frio de fim de inverno, o Teatro Municipal Brás Cubas, em Santos, assistiu a um ritual de passagem, como fazem algumas tribos isoladas da chamada civilização, em lugares longínquos e inacessíveis. Um ritual que passagem que marca, aos nove anos e meio, a entrada na adolescência teatral do ArteLouvor.

Não obstante a apresentação que fizeram, onde misturaram a maturidade de um grupo rodado e o frescor de quem ainda pode (e quer) ousar, sem medo dos críticos de plantão, qual criança que brinca indiferente a tudo e a todos. Um grupo que tem a bênção da ousadia, que, aliás, faz uma tênue fronteira com a estupidez, e que pôde dançar com a tragédia e a comédia e dar-nos um espetáculo que misturam os sonhos do amadorismo, a exatidão do profissionalismo e um show de quem ama fazer teatro. São quase dez anos de progresso, de escalada pra frente e para o alto, sem medo de ser feliz e que hoje misturou tecnologia e simplicidade, roteiro e improvisação, cacos que se incorporaram ao texto original e deu à peça a imprevisibilidade que é a marca da surpresa e do sucesso.

GODSPELL é uma peça que carrega em si o fardo e o risco absoluto de haver sido encenada e produzida milhares de vezes, por anônimos e famosos, e que fatalmente traz comparações. É um espetáculo que conta a história do Homem que mudou a História e salvou nossas vidas, e que desde sua criação por Steven Schwartz para a defesa de Tese em seu curso de Graduação, em 1972, é encenada e representada mundo afora, não só no micro-universo broadwayano mas nos quatro cantos do planeta, adquirindo sotaques, cores e linguagens diferentes. Na apresentação do ArteLouvor, sob a direção de Maria Tornatore, conhecida diretora teatral na baixada e direção musical de Fabrício Corrêa, graduando em Pordução Teatral e Direção Musical, Godspell consegue, num ambiente de austeridade, salpicar momentos de riso, mostrando o Cristo que foi 100% Deus e 100% Homem, Rei dos reis, porém cidadão; Senhor dos senhores, mas amigo íntimo dos seus seguidores; Dono de tudo, mas que se fez servo de todos. A sensibilidade de cada um dos atores, com seus clowns característicos levaram-nos às lágrimas e às gargalhadas em frações infinitesimais de tempo, que nem mesmo Einstein ousaria supor: vivemos e morremos nesta apresentação, mas também ressuscitamos juntamente com Cristo no aplauso final.

E a platéia presente, com a presença de conhecedores da ciência teatral e um batalhão de leigos no assunto, como se fosse um grande e anônimo juiz, sabedor do que é bom, do que é ruim e do que é muito ruim, soube dar a nota máxima (e justa) à apresentação. Num estertor coletivo, como quem está prestes a morrer e enxerga uma luz de cálcio, branca como a manhã mais fresca; esta platéia, repleta de letrados e de joões-ninguém levanta-se, e de suas mãos, incontroláveis e descontroladas, irrompe um aplauso orgástico que durou infinitos minutos.

Não houve quem se sentisse merecedor do conforto da poltrona, e numa autoflagelação voluntária (e necessária), colocamo-nos todos em pé, como quem devota toda a gratidão por presenciar tamanho espetáculo e por um momento, subimos às nuvens, planamos e retornamos á Terra como um pássaro feliz em seu primeiríssimo vôo.

A grande sacada de se homenagear este grupo e falar esta peça em um site voltado aos problemas dos bairros é poder chamar a atenção de que é preciso ter arte para haver Educação. Não podemos nos limitar, como forma de entretenimento, a apenas bailes funk de gosto duvidoso ou shows de pagode com aquelas letras de uma profundidade igual a de uma piscina de plástico. É preciso diversificar. Pagode, funk, também, mesmo porque gosto não se discute (se lamenta...), mas não somente essas manifestações culturais. Sonhar em ser dançarina de axé, também, mas poesia, fantoches, pantomimas, música clássica e popular, teatro...tudo isso precisa estar á disposição da parcela da população que constitui a base da pirâmide e que sofre muito, muitíssimo com a falta de cultura.

Tenho o privilégio de acompanhar este grupo desde seu nascedouro e sou testemunha do seu progresso em escala exponencial. Definitivamente, nesta ocasião, o ArteLouvor abandonou as fraldas do teatro de improviso, puramente amador e abraça a adolescência como uma menina abandona suas bonecas e já pensa em apaixonar-se pelo resto da sua vida. E a paixão do ArteLouvor já estava desde sempre escrita nas estrelas (que cada ator e atriz é): o amor incondicional pelo Teatro como forma de adoração a Deus, usando a arte como um meio de agradecer-Lhe pela bênção da vida, atitude que os primeiros hebreus também se preocupavam em ter.

Resta-nos apenas parabenizar o grupo, mais uma vez, e lembrar do titã Arnaldo Antunes quando diz que “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Panis et Circenses, como diria a aristocracia francesa, ironizando de seus súditos, completando “se não têm pão, que comam brioches”. E brioches inteiros, com o formato de cabeças reais, rolaram no chão gaulês. Portanto, não deixe que façam passar sua cabeça pela guilhotina da fome, muito menos a da falta de cultura. Exija do sistema comida e arte e faça você mesmo a sua própria revolução cultural!

Marcelo Lopes
Enviado por Marcelo Lopes em 07/06/2005
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