EU, RUSSA?

EU, RUSSA?

Não sei se meu rosto é um rosto comum. Não sei se sou daquele tipo de pessoa que você poderia chamar de comum. E não estou aqui sendo, de maneira nenhuma, arrogante. De maneira nenhuma, podem acreditar. Mas sempre tem alguém achando que eu sou parecida com alguma conhecida sua. Ou com alguém da televisão, como já aconteceu-me mais de uma vez: estou na fila de votação da penúltima eleição presidencial, e uma senhora pára, maravilhada, com aquela felicidade de quem se depara com uma celebridade, olhando-me com êxtase, segura-me pelo braço, “Você! Você... é da televisão, não é?” , eu olho-a sem saber o que dizer, “Não, não senhora, não sou...”, e ela decepcionadíssima, “Ah, jurava que era...”.

Para completar a minha certeza acerca do fato de possuir um rosto extremamente comum, uma moça absolutamente desconhecida interpela-me em um elevador, há algumas semanas atrás, “Ai, eu preciso lhe dizer isso, você é super parecida com uma menina que conheci na Europa quando estava fazendo intercâmbio, você por acaso não se chama Kátia?”, e eu, sorrindo (já pensando, “Ah, não, lá vêm mais uma...), “Não, não me chamo”, e a moça continua, “Incrível, você é igualzinha, impressionante, o rosto, os cabelos, tudo!”, e eu “É que pena, eu nunca estive fazendo intercâmbio na Europa”, e ela, “Sabe, ela era russa!”. Como? Russa? Então eu não entendo mais nada, a maluca me faz a pergunta em português, eu respondo em português, será que ela realmente achava que eu era a russa que ela tinha conhecido na Europa há anos atrás??? Das duas uma, pensei, “Ou esta menina está me passando uma cantada, e eu preciso explicar para ela que, apesar de não ter nenhumíssima espécie de preconceito contra homossexuais, prefiro pessoas do sexo oposto, sou inclusive casada e tal; ou, definitivamente, é uma doida, e espero que esse elevador chegue logo no térreo!”.

O elevador chegou mesmo logo, e nós saímos, ela disse um tchau simpático (acho que a segunda opção estava certa, mesmo, era meio louquinha), e fui-me embora. Mas fiquei com aquela coisa na cabeça, aquele pensamento maluco de saber que existia uma russa com a minha cara circulando por Moscou, ou por algum outro país do mundo (poderia estar fazendo outro programa de intercâmbio, poderia ser uma cientista social poliglota, sei lá). Só sei que a russa igualzinha a mim perambula, neste momento, por algum lugar do planeta, sem saber que existe uma sósia dela morando na cidade mais multicultural do Brasil.

Achei impressionante imaginar que, em meio aos bilhões de habitantes do planeta Terra, havia uma moça russa igual a mim. Igual a mim, que não tenho um pingo de sangue russo correndo nas veias. Tenho ancestrais italianos, alemães, portugueses e até franceses, mas nada de russos. Como diabos posso ser parecida com uma russa?

Em época de Olimpíadas, diversas russinhas estiveram a exibir seus rostinhos ultra-brancos e saudáveis com olhos claros e serenos na telinha da TV, e eu então comecei a olhar para todas elas meio curiosa, de um modo diferente, rindo mentalmente, pensando se realmente tenho alguma semelhança com as seríssimas meninas eslavas. Quisera eu poder dar saltos e jogar como elas! De repente, grande susto: uma ginasta de catorze anos surge aos mil pulos na tela, meu Deus, e ela é realmente parecidíssima comigo! A moça do elevador poderia ter razão, tenho algo de russa e não sabia, que coisa estranha! Nunca soube disso. Senti-me na mesma situação do protagonista de um dos mais recentes romances de José Saramago, O Homem Duplicado, que descobre existir um sujeito igualzinho a ele no mundo, exatamente pela tela de uma TV. Meu “duplo” estava ali, frente a frente comigo, dando saltos nas Olimpíadas de Atenas. Tragédia Grega???

Senti uma espécie de aflição ao ver a menina na TV. Realmente, como havia pensado desde que encontrei a moça no elevador, há uma russa que perambula pelo planeta com as minhas feições. Só que ela tem catorze anos e é ginasta. Contorce e domina o corpo com uma agilidade, leveza e graça raramente vistas. E parece-se comigo. Mal sabe ela que há uma fulana morando na principal cidade brasileira que perambula pelas ruas com o rosto igual ao dela, e é professora de inglês e escritora. Não tem tanto domínio do corpo, e nem tanta graça e leveza. Um certo domínio das palavras, vá lá. Mas, é uma “menina” muito feliz. Voa de vez em quando, voa fundo no pensamento e traz um pouco desses vôos aos seus leitores. Faz com que as palavras saltem de sua mente e da tela de seu computador para as mentes e telas dos leitores. Leitores que, espera ela, sintam-se sempre muito leves, voando também muito alto, por meio e dentro de suas histórias.

Clarice Casado
Enviado por Clarice Casado em 24/01/2005
Código do texto: T2292