NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM

NEM SÓ DE PÃO VIVE O HOMEM.

Maria Teoro Ângelo

Há dias em que a gente acorda com o firme propósito de melhorar o mundo. Por isso, quando abri a porta, eu já sabia o que iria encontrar: um estranho. Protegida pelas altas grades do portão, eu vi o homem tentando explicar qualquer coisa. Voltei impelida pelo surto de generosidade compulsiva e peguei não uma esmola, mas uma nota graúda, que entreguei a ele pelo vão das barras de ferro. O coitado fez menção de me entregar um saco de pães, que trazia nas mãos. Não tinha vindo pedir, viera negociar.

Não queria aqueles pães porque sua fome era de vício, da bebida salvadora que o deixaria caído, jogado num canto qualquer, anestesiado para não pensar, não lembrar, não viver. E nesse sono prolongado morreria um pouco.

E antes que isso acontecesse, aproveitando a sobriedade ansiosa e desesperada daquele ser à minha frente, eu ouvi que perdera o emprego onde servira a vida toda, num só ofício, com um só patrão. A peregrinação fracassada pela idade, pela resistência em se contratar, pela falta de preparo, de dons, por tudo junto ou apenas porque às vezes as barreiras se tornam intransponíveis. A mulher, vendo o barco afundar e o marido mergulhado num mar de pânico, tratou de fugir com outro.

Dependendo do ângulo pelo qual se olhasse, éramos nós dois, o homem e eu, prisioneiros. Ele, de sua triste sina e eu, de meus medos, preconceitos, da minha fragilidade diante do meu propósito. Aquelas colunas frias de metal separavam dois seres humanos. Do lado de lá alguém que não pôde sozinho, a quem faltou apoio, ou amizade, ou chance, ou crença , ou mão estendida.

Nos breves intervalos entre a lucidez e a loucura certamente se lembraria de sua fraqueza diante da primeira pedra no meio do caminho. Havia parado de sonhar e morria lentamente. Logo aquelas roupas ainda inteiras se transformariam em farrapos vestindo um ser errante que imprecisaria as estatísticas pelo fato de passar a não existir, mesmo ainda simbolicamente vivo.

A diferença entre nós era que eu, do lado de cá, protegida pelo amparo de todos, rodeada de amor, cheia de entusiasmo pela vida e pelo trabalho, faria outra trajetória. Nenhuma pedra impediria a minha caminhada porque eu não tinha um único sonho, mas todos os que eu conseguia sonhar. Eu tinha a sorte de ter estudo, alguns dons e de não ter medo de enfrentar cara a cara a vida nem sempre fácil de viver.

Mas confesso que tive vergonha de mim, de não ter podido abrir a porta, de não ter salvado aquele homem, do meu egoísmo tão anticristão, de tudo o que eu deveria ter feito e não fiz.

Ele seguiu levando os pães e o dinheiro. Faltava a mão estendida. Eu entrei levando comigo as minhas virtudes vazias. Faltava a coragem de ter destruído as grades que me aprisionavam à minha mania de falar, falar e não fazer, não fazer.