"Meu Primo é Evangélico" =Reedição devido ao grande número anterior de leituras=

Meu primo é evangélico. Até aí nada demais. Existem milhões de evangélicos por este país afora para grande alegria de todos os tipos de pastores. Acontece que meu primo é do tipo obcecado. Do tipo que não tira da boca as palavras Jesus, Deus, Irmão, Aleluia, etc. Em resumo: um chato. Simpático em seus modos, mas um chato em sua conversa sempre igual, monótona, batida e rebatida, em que cada frase é um trecho de pregação.

Em sua casa não tem tevê para que não aconteça de um chamado de Deus pegá-los todos distraídos e eles não poderem atender a um irmão necessitado, diz ele.

Excelente tecladista, só toca músicas que louvem ao Senhor. Fora isso seria um grande pecado executar qualquer outro gênero musical.

Um dia fomos convidados para a festa de quinze anos de sua filha única (só podia ser...) e lá fomos nós. Lá no meião da periferia mais recôndita de São Paulo, quase na esquina do fim do mundo, e para nossa surpresa total, até que era um belo e grande clube localizado em um lugar ermo, assustador mesmo, por onde se chegava por uma estrada de terra totalmente enrugada, esburacada, empoeirada, estreita, do tipo filme de aventuras do Indiana Jones.

Beleza de decoração. Mesas lindamente arrumadas, garçons enfileirados, todas as pessoas muito bem vestidas e, para completar, quinze rapazes trajando smokings e quinze mocinhas bonitas usando belos vestidos brancos, compridos. Julgamos todos nós, os ímpios, os incrédulos, os destinados às penas do inferno, que aconteceria uma linda valsa comemorativa.

O tempo passava e a festa não começava. As pessoas ocupando a imensidão de mesas não se moviam. Ninguém conversava. Não se ouviam risadas. Nada de aparecer barulho de festa e meu primo aproximou-se com um copo nas mãos:

- Uma bebidinha, primo? Então, está gostando da festa?

A pergunta me pegou tão de surpresa que quase perguntei:-Ah, já começou?

Mas pensei rápido e respondi que sim, apesar de àquela altura estar comparando o ambiente a um velório diferente, de alto luxo. Em tempo: a “bebidinha” era um guaraná dessas marcas de fundo de quintal.

Havia uma boa variedade de bebidas: desde a mais barata Tubaína até o mais fino dos guaranás alternativos. Todos sem gelo. Vai ver era pecado bebida gelada. Mas havia espumantes. No banheiro, nas saboneteiras...

Ilhados naquele clube no meio do mato, cercado de evangélicos por todos os lados, sentindo-nos acuados, eu, minha mulher, meus filhos, meu irmão, meus sobrinhos, os dois irmãos do pai da debutante e mais uma ou duas pessoas “pecadoras”, nos reunimos do lado de fora do clube e alguns minutos depois as gargalhadas estouravam pra valer. Contamos piadas, fiz imitações, saíram gozações sobre tudo, e a gente ria de chorar.

Os olhares, às dezenas, que vinham em nossa direção, dizendo claramente “onde já se viu rir numa festa?” não nos incomodavam.

- Poxa...o primo podia ter feito essa festa em um lugar mais perto, mais fácil de chegar...

- No Pantanal, por exemplo...

Acho que por falta de hábito, as bebidas não-alcoólicas logo me subiram à cabeça e fui o palhaço da turma, para espanto de minha esposa, que pensava que isso só acontecia depois de várias cervejas. Não acreditava em meu talento natural...

Fomos todos convidados para os “Parabéns” e lá fomos nós. Gente, juro que não é exagero nem implicância de minha parte, mas eu nunca tinha ouvido em toda minha vida coisa mais chocha, mais desanimada, mais triste que aquela gente entoando a musiquinha universalmente conhecida e quase sempre acompanhada de muita alegria. Foi de doer, pra dizer o mínimo. As pessoas, em sua quase totalidade, apenas mexiam as bocas e deixavam que quem tivesse coragem que cantasse. Quase cheguei a ouvir as palmas. (Depois fiquei sabendo que cantar os parabéns foi coisa que a mocinha aniversariante teve que exigir do pai com braveza. Se não, nem isso...).Valsa também não teve. Juro também sobre isso.

Alta madrugada, lá pelas onze da noite, resolvemos ir embora, entramos nos três carros "não evangélicos", e meu primo dono da festa aproximou-se com seu melhor sorriso:

- Então, o que acharam da festa?

- Simplesmente inesquecível. – consegui responder com a minha mais séria e amável expressão.

A uma distância segura, já um pouco longe do clube, tive que parar o carro até que todos se cansassem de rir. Inclusive eu, claro.

- Inesquecível!! Só você mesmo pra ter essa cara de pau!! Mas que foi inesquecível, foi mesmo. Noutra dessas juro que ninguém me pega.-disse alguém dentro do carro.

Nem a mim. Juro. Onde já se viu ser proibida a alegria? Em minha opinião de pecador, tristeza sem motivo é que é pecado pra valer.

Não há o menor perigo de meu primo evangélico ler isso aqui e ficar bravo comigo. O Recanto das Letras está lotado de pecadores de todos os sexos possíveis e imagináveis e por isso ele nunca aparecerá por aqui.

Ps: Esqueci de contar que os garçons nos evitavam e passavam por nós voando com as bandejas de salgadinhos. Acho que éramos indignos dos comes e bebes. O jeito de nos servirem foi eu ir até o chefão geral e avisar que o primeiro que não parasse perto de nós levaria uma rasteira, mas isso só depois que o golpe de dizer, mais ou menos alto quando passava um garçom em disparada: "Olha só quem está chegando quase pelada!!" não estava colando mais.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 03/08/2010
Reeditado em 03/08/2010
Código do texto: T2416026
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