A revolta das águas

A tarde de domingo transcorria lenta e previsível. Era um dia em minha memória, pelos meados dos anos 70, na, ainda, pacata Porto Alegre. Domingo de infância pobre, longe dos vídeos, computadores e outras maravilhas tecnológicas que iriam povoar a realidade das crianças de hoje. Tudo estava imerso naquele ar mormacento de verão.

Almoçamos tarde, como era de costume. Naquela época , já, o programa Sílvio Santos (des)animava as tardes dominicais. Assim, ligávamos o rádio para ouvir os jogos do Grêmio, diversão melhor para a opinião de um menino, levemente, fanático. Segunda-feira a escola nos esperava, e íamos levando os dias infantis.

De repente, um estrondo irrompeu por todo o bairro, vindo do Morro Santa Teresa. Algo que parecia um tiro de canhão, pensamos. Ali , naquela área, existiam muitos quartéis e era a fase mais dura do regime militar. Olhamos, rapidamente, para o morro. De lá, transbordavam imensas colunas de água. Parecia uma inusitada catarata se derramando pelas pedras. Em poucos minutos, ruas encheram-se de água e a nossa atenta audiência futebolística foi cortada por notícias ameaçadoras. Havia um acidente nas canalizações internas da Hidráulica Loureiro da Silva , a força da água já tinha vitimado uma pessoa e casas estavam sendo inundadas. Por vários dias, este fato repercutiu na vida dos porto-alegrenses, e tornou-se uma lembrança viva de meus primeiros anos.

Hoje , passadas mais de duas décadas, e eu aqui sentado, nesta cadeira de funcionário público municipal, reflito sobre a trama misteriosa do destino. Jamais, pensaria em estar ocupando este lugar, naquela distante tarde, mas o fato me marcou profundamente.

É, meu companheiro, como poderia eu imaginar. No fundo, são as coisas incompreensíveis e de grande sincronicidade que vão montando, pausadamente, os pedaços de um quebra-cabeça chamado vida...