As linhas tortas

Onze da noite, amigos reunidos, bebidas e risadas sobre a mesa, felicidade, e tudo corre bem até que se toca numa palavra: Deus. É falar em Deus, Roberto franze a testa, solta um risinho cínico, como quem diz “vocês ainda acreditam em papai noel, político honesto e deus? Quanta ingenuidade...”.

E se inicia uma velha discussão que costumava terminar em briga. Tenho amigos de várias religiões, mas um ateu na minha vida sempre foi coisa difícil de compreender. Após muitas polêmicas, resolvi simplesmente ser o que quero ser e deixá-lo ser o que quiser, evitando discussões para não abalar a amizade.

Mas nunca consigo cumprir essa minha resolução. Quando ele franze a testa em crítica, eu me controlo, quando ele ri da nossa “ingenuidade” eu me agüento, mas meu riso fica frouxo quando ele vem com aquela conversa mole sobre ciência.

Oparin. Haldane. Os coacervados, não é? As tempestades primitivas servindo como energia de ativação para os compostos orgânicos se formarem, sopas nutritivas, a primeira célula, a evolução, os mamíferos, homo sapiens. Darwin e toda essa conversa sem fim e (acrescento) magnificamente bela. Então eu sorrio também cinicamente, e pergunto: ok, Roberto, e daí?

Diante de toda essa construção de conhecimento científico, existe apenas uma dúvida realmente mortificadora para mim: o fato de os homens, ingênuos, se utilizarem do pensamento científico para negar a religiosidade. Por que fazem isso?

Se eu abrir um telefone na sua frente e explicar em detalhes o funcionamento, não creio que nossa compreensão do mecanismo anule o mérito do excelentíssimo sr Gran Bell. Pergunto então: Só porque os cientistas chegam a sentenças verdadeiras sobre a origem e funcionamento das coisas, quer dizer que não existe um agente por trás dessa origem e desse funcionamento? Que fazem os pesquisadores além de explicar mecanismos? São agentes ou meros observadores? E acaso podem ver tudo? E podem afirmar sobre o que não vêem?

Não sei, Roberto... Para mim, o papel da ciência é nos mostrar como as coisas funcionam e como podemos adaptar o funcionamento delas em nosso favor. Isso não exclui a possibilidade de uma entidade responsável pelo funcionamento das coisas: seja ela energia, pessoa, natureza, o que você quiser. O que eu sei é que construir um telefone demanda uma vontade, uma organização, inteligência, uma mente. Imagine então para construir galáxias, dimensões diversas, micro e macrocosmos, folhinhas de coentro, buracos negros, pessoas como você e eu. Demanda organização e senso artístico, demanda uma mente que pense, logo, exista.

O fato é: se a ciência não comprova a existência de deus, também não prova sua inexistência. Não se o concebermos como a inteligência responsável pela reação química formadora dos coacervados, a mão que puxou o gatilho do Big Bang. Qual descoberta científica pode ir de encontro à idéia de que deus exista? Nenhuma. Todas elas nos revelam, apenas, mais e mais aspectos sobre a forma como ele trabalha, a linguagem que ele usa, linguagem de coacervados, cadeias alimentares, metabolismos e matéria. Dizem que o rapaz escreve por linhas tortas. Bem, vão surgindo detalhes nas entrelinhas dessa pesquisa, conforme nossa capacidade intelectual vai aumentando através dos séculos. Primeiro veio uma história sobre barro. O microscópio, o método e a vontade de homens honrados nos ajudaram a entender melhor essa linha curva de deus. E falam agora de coacervados. Depois chegarão pesquisas mais avançadas trazendo evidências mais convincentes sobre a origem do universo. Mas, até lá, a tecnologia de hoje já me convenceu de que o universo é organizado e bonito demais pra ser obra do puro acaso.

Já que o assunto é ciência, diga-se algo importante sobre ela: a ciência evolui. Evoluindo, muda. No séc XVIII, ela dizia que Deus não poderia existir, pois o universo pode ser explicado racionalmente. Hoje, ela se espanta ao constatar, cada vez mais, que a explicação racional das coisas talvez seja evidência da existência (e da meticulosidade) de Deus. Ora, você vai admitir: se Ele existe, é um artista extremamente organizado. Da precisão nanométrica das paredes celulares até a imensidão das galáxias velozes, em expansão eterna. Da irracionalidade das plantas até meus olhos que olham os seus perguntando docemente – por que não? Se o “sim” não é certo, porque não deixar o “não”, pelo menos, na incerteza? Agnóstico, ainda entendo. Ateu, jamé.

E agora vou explicar por que eu acredito em Deus. Eu acredito em Deus porque eu sinto que ele existe, e confio na minha intuição. Também acredito em Deus porque acredito apenas parcialmente na ciência. Ela parte do pressuposto de que a lógica explica tudo (falso), e às vezes, na beleza da ciência reside sua perdição... Ficamos tão paralisados diante da compreensão de certo fenômeno que desconsideramos a presença de outros agentes. Limitados ao que podemos isolar, ver, tocar, ou comprovar segundo nossa lógica, tornamo-nos ignorantes em relação ao etéreo, invisível, intocável e indisível. Normal. Coisa de criança tão impressionada com a roda gigante, que nunca vê o operador. Acredito que Deus escreveu o universo e nos concedeu o direito de estudar para compreendê-lo melhor, e usufruir dele, dotando-nos ainda da capacidade de raciocinar e direito de questionar, da qual às vezes fazemos uso com certa arrogância humana. Lembro que, se Deus existisse, ele não seria óbvio. Ele teria uma linguagem magnífica, capaz de ser entendida por todos os homens em todas as épocas, e adaptável às necessidades de cada tempo. Você não se contenta com explicações mitológicas. Os homens do futuro não se contentarão com coacervados. Mas não me chame de ingênua só porque eu considero a existência de energias que transcendem o visível. Afinal, aqui no séc. XXI, os cientistas tentam entender as linhas tortas.

Jéssica Callou
Enviado por Jéssica Callou em 14/10/2006
Código do texto: T264408