LIVREM-ME DE MIM

“O poder de querer é a graça pela qual alguma coisa é propriamente capaz de ser. Este poder é propriamente o possível; aquele possível, cuja essência repousa no querer. É a partir deste querer que o ser é capaz de pensar.”

Martin Heidegger

Acordei de uma noite agitada. Amanheci nublada em cansaço e dúvidas... Seria mais um dia daqueles, porém senti que encontrara um refúgio: fingiria não me perceber...

Todos os últimos acontecimentos fervilhavam em minha mente: a zeladora que passou um mês sem entregar a correspondência por não saber meu nome; o síndico – locador e assediador - que me acusou de ser uma “mulher esperta” só porque pedi uma prestação de contas; a relação das constantes lutas sindicais com o trabalho rotineiro; a necessidade de procurar um novo apartamento...

- “Como eu ia saber que a Helena morava no 41?”

- “Você é uma “mulher esperta”, então entenda que sou proprietário de todos os apartamentos e faço o que quero...”

- “Como assim usa vários nomes? Como vou saber se estou entregando a correspondência para a pessoa certa...?”

- “Assembléia às 3 da tarde...”

- “O processo deverá estar pronto amanhã!”

- “A convenção sou eu!”

Quando passei pela portaria, a zeladora me cumprimentou com um sorriso inocente e afirmou que não havia correspondência. Enquanto abria a porta, arriscou inovar o assunto.

- “A senhora também usa nomes masculinos?”

Fingi não ter escutado a pergunta, já estava determinada a não acrescentar em meus pensamentos novas palavras e seqüências de idéias que criassem novas inquietações. A zeladora deveria conter sua curiosidade e entregar a correspondência no endereço indicado sem tanta hesitação.

Encontrei, no caminho, os diálogos que tanto marcaram meus últimos dias. Como não percebê-los se as palavras ecoavam em mim e forjavam meus movimentos? De repente, compreendi que os absurdos verbalizados ganhavam força e sustentavam a realidade que me tirava o sono. A manipulação das palavras...

- “Paralisação de 48 horas.”

- “Mas a senhora tem certeza de que esta correspondência é sua? E se for para outra Helena?”

- “Se você marcar reunião, eu não vou... Não quero ver os moradores discutindo...”

- “Não esqueça a panfletagem. É importante informar a população...”

- “O processo já está pronto?”

- “Mais 48 horas...”

O trajeto cotidiano é preenchido pelas funções de síndicos, zeladoras, sindicalistas e funcionários... As expressões ganham força em cada perfil que passa. Alguns perguntam meu nome, outros afirmam ser proprietários... A população é mantida informada de seus desconhecimentos e o processo me espera com os bilhetinhos do chefe...

- “Faço o que quero, sou síndico e proprietário...”

Observo a mulher de olhos tristes caminhando em minha direção como todos os dias - ombros caídos e passos lentos. Olho para o chão e continuo a marcha. Finjo não perceber meus passos. As palavras ainda sussurram as inquietações, assombram-me com as sombras dos seus proprietários e zeladores. Mas não me deixo descompassar e, com a cabeça baixa, aproximo-me da senhora que nunca retribuiu meus cumprimentos, nunca perguntou meu nome ou me chamou de “mulher esperta”.

Quando percebo sua sombra perto, levanto rapidamente a cabeça e, com o olhar fixo no horizonte, falo pausadamente:

- “Livrem-me de mim!”

A senhora esboça um sorriso espontâneo. Não posso olhar diretamente, mas sinto que, apesar da brevidade de seu relaxamento facial e do leve brilho do olhar tão entristecido, as palavras se tornam fortes em seu dia e podem até ser um ponto para reflexão ou divertimento.

Como ela administrará minha atitude? Será que zelará pela minha suposta sanidade? Ou apenas me julgará como costumamos fazer sem grandes questionamentos?

“A moça de passos apressados fala sozinha...”, “Será que é louca?”, “Ou também tem problemas?”... Ela, certamente, intercalará pensamentos durante sua jornada, distraindo-se de seus conflitos diários.

Será uma refém de novos sorrisos, talvez até liberte alguma alegria da expressão lacônica de seu olhar.

O significado das novas palavras ganha força no horizonte. Talvez seja uma verve metafísica ou apenas um desabafo... Mas consigo esquecer as articulações possíveis das palavras que me assombram e compreender que minha presença é importante para manipular a percepção de minha liberdade de mim.

- “Paralisação por tempo indeterminado!”

- “E o processo?”

Desfaço algumas nuvens com novas perspectivas. Crio palavras e nomes... Não quero ser privada de significado e condenada a me dissimular em própria carcereira nas correntes de palavras alheias!

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 21/06/2005
Código do texto: T26622