O MONSTRO DAS MANHÃS E A FADINHA DO AMOR

Um dia absurdo... Chego em casa tarde e cansada. Com a chave ainda na porta, percebo os primeiros sinais de minha intimidade:

“Oooooiiiii, manhê!”

Barbarella vem ao meu encontro. Ela ainda está de uniforme e seus desenhos espalhados no chão da sala. Entro e penduro a bolsa na cadeira como de costume, pego algumas contas na mesa e, sem parar, beijo sua testa. Atravesso o corredor com a pequena sombra me acompanhando.

“Barbarella, ainda de uniforme! São quase dez horas! Não falei...”

Nossas sombras entram em quartos diferentes. Estou exausta. Entro no banho e a água está morna. Para uma fria noite curitibana, nada é pior... Uma rápida ducha, algumas gotas deslizam no corpo tenso por instantes. Saio com a idéia de que tenho de mandar regular o aquecedor. Mais um compromisso...

“Manhê, vamos...”

A voz infantil invade o quarto. Meu pensamento está tão confuso, são tantas coisas agendadas que não consigo cumprir... Tenho que tomar algumas decisões, mas não me concentro nas possibilidades...

“Não!”

Respondo sem escutar direito. Ela não completa a frase, eu esqueço de que prometi algo... Inclina a cabeça com um sorriso maroto e, com os olhos piscando, tenta me convencer...

“Mas você prometeu! Só uma partida...”

“Estou cansada. Trabalhei o dia inteiro e ainda fiquei presa na reunião...”

Ela guarda o jogo e deita a meu lado com o livro do menino maluquinho. Por instantes, parece estar entretida...

“Manhê, sabe o Marcus...”

Inicia a contar uma história complicada cheia de detalhes: do Marcus sentou em sua frente na sala de aula e usou sua borracha; o Pedro brincou de pique-pega com ela e a Marina no recreio. A Bruna... Os personagens são os que sempre estão em suas narrativas: ela namora o Marcus sem ele saber e o Pedro a namora e ela sabe... Mas ela vai se casar com o Marcus...

Continuei distraída, enquanto ela contava os detalhes deste pequeno e infantil triângulo amoroso. Ela, de repente, pára e me pergunta o que acho.

“Sei lá!”

“Você não tá escutando!”

“Barbarella, estou cansada, trabalhei o dia inteiro... Amanhã nós conversamos...”

Ela se levantou e caminhou em passos largos. Olhou-me com indignação e tristeza. Saiu do quarto resmungando. Senti-me culpada e disposta a fazer as pazes, chamei-a e pedi um beijo de boa noite. Ela me abraçou e saiu.

Quando acordei, atrasada e já cansada, reparei que tinha um papel dobrado ao lado do travesseiro. Guardei-o e saí apressada. No elevador, li a pequena carta e fiquei impressionada com algumas percepções de minha pequena menininha de sete anos, principalmente sobre a rotina e o sentido do tempo.

“Sempre a mesma coisa

Triste por amor rotina para mim depois de ter ficado mais de 10 dias de gripe e depois de 1 ano é o bastante sempre vendo na ruas tristes e crianças felizes com 2 anos disendo mamãe te amo.

Tempos atrais eu com esta mesma idade quando era feliz quando não tinha paqueras agora quero contar novidades e ela não ouve tudo que faso está errado e ainda tenho que dar um beijo

Hoje

Sua filha”

Sempre a mesma coisa... Apertei meu andar e retornei para casa. Entrei em silêncio e a acordei com o monstro das manhãs. Ela adora esta brincadeira!

Despertou disposta na luta de travesseiros, abraçou-me e desejou um bom dia. Mostrei sua cartinha e perguntei se ela estava triste...

“Não mãe, é ficção...”

“Fic... Você sabe o que significa?”

“Mãe, não é baseado em fatos reais. Você esqueceu que sou escritora?”

Falou com a voz impostada e a feição de gente importante. Desde que ganhou um concurso de poesias na alfabetização com o verso “Botei o pijama e caí na cama”, ela se intitula uma artista das letras.

Continuamos a brincar e ela venceu a maldade do monstro com a frase mágica:

“Sou a fadinha do amor!”

Fui trabalhar com um novo enredo. Certamente, uma crônica baseada em fatos reais e sem um final conclusivo.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/06/2005
Código do texto: T27516