O OLHAR DO MONGE

Não fui ao templo em busca de religiosidade. Atravessei a fronteira dos mundos por curiosidade arquitetônica e ali estava, estática, diante da construção oriental, pedida entre a beleza do templo, as tantas estátuas enfileiradas do lado direito e o grande Buda dourado, sentado à beira do rio Paraná, com o olhar dividido na fronteira Brasil-Paraguai.

Caminhei por entre as áureas estátuas e pude sentir minha sombra penetrar em alguma representação distante. Tudo naquele lugar era divino. A vida parecia levitar nas cores e nos detalhes de tantas reproduções. O pôr-do-sol no horizonte paraguaio acentuava os brilhos. Buda permanecia sereno, como se observasse ao longe o tumultuado trânsito da Ponte Internacional da Amizade.

Dois homens caminharam em minha direção. Fiquei apreensiva, pois havia entrado na propriedade sem me anunciar e, com tanto entusiasmo, deixei-me enfeitiçar pelo mundo desconhecido, silencioso e expressivo. Não percebi que a solidão perdida na amplitude me deixava tão vulnerável.

O monge era um rapaz novo, sem qualquer marca de expressão na face. Sustentava um olhar profundo. Os traços orientais marcavam uma beleza diferente. Seus gestos eram encantados. O outro homem, com uns cinqüenta anos, era o administrador e “tradutor” do religioso. Representava, em português, a ponte entre a religião budista e a comunidade coreana com a realidade da tríplice fronteira.

O monge permaneceu calado, mas seu silêncio gritava nos olhos com serenidade. Era um olhar enigmático e avassalador. Sentia-me o objeto pleno de sua atenção. A percepção sem intenções dissimuladas era a interpretação inocente e sábia do presente, a transcendência das limitações cotidianas...

O administrador era a repetição do lugar comum. O olhar desviado e as palavras decoradas explicavam a representação da arquitetura e as diversas estátuas do Buda. Traduzia as mensagens em valores numéricos: quantas estátuas, quantos freqüentadores, o custo da construção... Erguia com as palavras a sua importância no templo, mas era evidente que o homem não tinha fé ou compromisso espiritual, estava apenas cumprindo o seu trabalho.

O monge coreano não entendia nosso idioma, mas parecia compreender as palavras pelos desvelamentos do olhar. Deslizava a atenção com delicadeza. Penetrava a alma sem ser invasivo. Sua compreensão superava os julgamentos a que estamos acostumados.

Ganhei um livro sobre budismo e fui convidada a ir ao próximo culto. Sai com o olhar me acompanhando, uma expressão que nunca mais deixaria minhas lembranças. Durante alguns meses observei o brilho da grande estátua do Buda, tentando trazer a magia do olhar do monge à margem do meu dia-a-dia.

Longe da fronteira, continuei no curso dos rios cotidianos. Saí do trabalho com uma grande sensação de estranhamento. A rotina estava me sufocando nas omissões e indiferenças. No caminho de volta, fui surpreendida com um murmúrio quase imperceptível. Era um homem dobrado às míseras circunstâncias sob a marquise. Parei meio indecisa, sem compreender o que o homem desejava no frio entardecer, sem definir o que tanta me incomodava naquele dia comum...

De repente, fui surpreendida com o mesmo olhar do monge. Os olhos acendiam a face, escondida nos cabelos desalinhados e na barba crescida, e projetavam em mim a mesma profundidade. Com a transcendência do instante, pude sentir a vida pulsar e trazer à margem o brilho do que verdadeiramente importa. Fiquei parada durante algum tempo, mergulhada na profundidade do olhar sem definir as intenções, distante de nossas representações. Ele se ergueu e piscou levemente, reassumindo a intensidade e a força na expressão dos olhos. Sem palavras, caminhou em outra direção e se perdeu no entardecer; eu reencontrei o trajeto...

Compreendi que a magia do olhar do monge estaria presente sempre que eu encarasse a vida com verdade e, de coração aberto, dedicasse-me à leitura e interpretação do mundo ainda que em perspectivas silenciosas.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 26/06/2005
Código do texto: T28011