A Arte de levar vantagem

Já furei cinema. Na minha infância, muitas e muitas vezes, usando as mais diversas artimanhas, entrei de graça no Cine Boa Vista. João-funga-funga, o porteiro, não era o que se pode considerar um homem esperto. Na verdade, a leseira tomava conta daquela massa disforme, seca, desajeitada e fungativa.

“João, vou lá dentro falar com meu irmão.” O coitado acreditava e, lá, numa das cadeiras da sala de projeções, mais um espertinho se aboletava para ver o filme.

“João, seu Boaventura tá te chamando na bilheteria.” Enquanto o porteiro ia atender o falso chamado do gerente, nós aproveitávamos para entrar no cinema.

“Claro que te entreguei a entrada (naquele tempo não se falava ‘ingresso’. Ingresso era coisa pra intelectual). Tá aí, João; é essa verdinha.” João, com ingressos verdes na mão, ficava em dúvida e deixava o vigarista entrar.

Outras vezes, cercávamos o porteiro e o instigávamos a contar filmes. João se empolgava e, enquanto relatava cenas de perigo (com sonoplastia repleta de onomatopéias), nossos colegas entravam no cinema sem que ele notasse.

Filmes proibidos para menores de 18 anos? Nós, aos 13 ou 14, sempre procurávamos dar um jeito de assistir e, às vezes, conseguíamos. Comparados com o que vemos nos dias de hoje, as películas censuradas daquela época são verdadeiros contos de fadas. Ver os peitos da Brigitte Bardot e as coxas de Raquel Welch deixava-nos com as homências cheias de tesão.

Os tempos mudaram, mas as artimanhas continuam a ser usadas pela garotada criativa.

Durante as férias de fim de ano, o filme usado para atrair a garotada era “Minha super ex-namorada“ – uma dessas insossas e apelativas comédias americanas que não acrescentam nada a coisa nenhuma. O fato de ser “recomendado para maiores de 14 anos” mexeu fundo com a curiosidade de Lucas, Gustavo, Nando e Guilherme. Os três primeiros, entre 12 e 13 anos, tinham porte de meninos mais velhos, e Guilherme, nove anos, baixinho, atarracado, modelo “toco de amarrar onça”, apesar da censura, decidiram assistir ao filme: “Num tem nada não. Na entrada vai ter tanta gente que o porteiro nem vai prestar atenção nesse negócio de idade”.

Empolgados, vestiram camisetas negras, calçaram daqueles tênis que trazem uns dez centímetros de amortecedores, pentearam os cabelos usando muitos gramas de gel e partiram para a aventura. Após comprar os ingressos, os meninos esperavam o momento certo para ludibriar o porteiro. À chegada de uma turma de adolescentes, eles se colocaram à frente e foram cruzando a roleta. Lucas, Gustavo e Nando passaram sem problema. Ao ver Guilherme, o porteiro chiou:

- Esse aqui não tem 14 anos...

Guilherme, sem ação, amarelou. Lucas correu em seu socorro e, cinicamente, justificou:

- Tem sim, moço. Ele é pequeno assim porque ele é mongolóide.

Até hoje, eles têm a impressão de que passaram o porteiro pra trás. Será?

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Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 07/03/2011
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