SERVIÇO MILIONÁRIO

“O Doutor está?”

“Ele saiu... Deve demorar...”

“Quem tá falando?”

“Quem...? A empregada...”

“O doutor tem um serviço milionário para mim. Vou tirar a barriga da miséria...”

A mulher desligou o telefone. Perdida no diálogo, tentou resgatar sua motivação ao assumir um personagem. Por que tanto constrangimento com o Toninho? O marido deveria atender o telefonema e simplesmente falar que não necessitava de nada este mês, afinal ele já havia lustrado todos os móveis nos últimos meses.

Voltou à sala e, com um gesto de reprovação, confirmou sua suspeita.

“Sim era o lustrador...”

“Não falei! Toda quinta ele liga, fala que precisa de “algum”, insiste para pegar um serviço... Um chato!”

A mulher sustentou o olhar enquanto o marido fingiu não percebe-la. O telefone tocou novamente. O homem, com um gesto inquieto, indicou que ele ainda não chegara.

“Não, não está...”

As ligações se repetiam. Banco oferecendo novos cartões de crédito, o encanador perguntando se o ralo estava escoando a água, um amigo distante que ficara desempregado, oferta de novo serviço de telefonia, planos de saúde, enganos...

“Deve demorar... Talvez tenha viajado...”

Se não estava para ninguém, era melhor tirar o telefone do gancho... A mulher tentava convence-lo nos intervalos das ligações, mas o marido era contrário à atitude tão radical.

“E se for alguém importante...”

As palavras do lustrador não saíam da cabeça da mulher: “serviço milionário”, “vou tirar a barriga da miséria...” Passou o dedo na tampa da mesa e percebeu que a poeira ofuscava o brilho do móvel. Será que a empregada também estava envolvida? Será que a insistência do lustrador a convencera a relaxar na faxina?

O que ele queria dizer com serviço milionário? Seria um código na trama contra os patrões, a exaltação a um levante.

Ela sentou-se ao lado do marido e falou com ironia.

“Ele disse que você tinha um serviço milionário para ele...”

“Ele, quem?”

“O lustrador, ora! Quem mais liga todas as quintas?”

O homem olhou-a sem compreender bem. Talvez fosse uma nova abordagem do Toninho, talvez uma brincadeira... Além de chato e insistente, era também criativo...

A mulher continuou tentando demonstrar a seriedade da situação. Os móveis recém-lustrados estavam empoeirados, o lustrador ligava sistematicamente todas as quintas e sugeria a empregada que se tratava de um serviço milionário.

“Mas que empregada? Dalva está de licença esta semana...”

“Eu falei que era a empregada. Fiquei sem graça, fui pega de surpresa...”

“Que cara de pau!”

“Quem? Ele, né!”

“E se eles se encontrarem?”

O constrangimento tomou conta do casal. Os dois estavam confusos com a forma como o lustrador estava enraizado na casa. Havia marcas de sua presença em todos os cômodos, até no velho cabide do quarto de passar roupa, telefonemas insistentes e a perspectiva de um serviço milionário.

O marido tentou fazer um levantamento dos gastos com o lustrador. Reparou que, diante das lamúrias e confissões de dívida, sempre pagava um valor acima do preço de mercado. Em seu orçamento de funcionário público aposentado, o lustrador representava um porcentual significativo e constante.

O telefone tocou novamente. O marido se levantou e, com o olhar determinado, aparentou que iria atender a ligação. Hesitou por um instante: O que falar? Como negar? Sentou-se novamente com as mãos pesadas sobre os joelhos da mulher e murmurou em seu ouvido:

“Vamos fingir que não tem ninguém em casa. Pode ser que ele desista...”

Os dois permaneceram encolhidos no sofá em silêncio, ouvindo com atenção os insistentes toques do aparelho.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 28/06/2005
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