História sem importância

Dizem que a literatura serve para isso ou para aquilo outro, que sua função na sociedade é esta ou aquela. Mas se eu for atribuir uma função a tudo que escrever, perderei a ingenuidade completamente. Então eu vou ceder ao meu impulso e contar agora apenas uma história sem importância, e que sempre quis contar só pelo prazer de não esquecê-la. Aqui não há nenhum fundo moralizante, nenhuma pretensão de mudar costumes, instituições, ideologias, ou despertar opiniões a meu respeito. Apenas os fatos. E as impressões.

É sobre uma professora de redação que tive lá pela quinta ou sexta série. Era uma moça baixinha, branca, de cabelos crespos e muito exigente. Estava em começo de gravidez e não parecia gostar de mim. Mentalmente, associei a figura dela, pequena com a barriga metida em macacões e coletes, a um rato. Daqueles das fábulas, que se vestem e falam. Coisas de criança, entendem?

Era um domingo. Íamos eu e minha mãe à missa. Passávamos por uma calçada estreita em frente a um supermercado. Pois de lá surgiu a figura da minha profa. exigente e certinha, toda desarrumada , correndo, carregando um pacote de cuscuz nos ombros. Ela passou perto de mim com um vestido surrado, e viu que eu a vi. Sorriu com muito embaraço e continuou seu caminho até se trancar na porta de sua casa. Eu tinha sorrido também, um sorriso que se aproveita do desconforto alheio. Aquela cena tinha sido de um prazer terrível. Foi como se os papéis se invertessem e eu a tivesse pegado colando numa prova. Uma espécie de flagra cruel.

Na segunda-feira, os alunos estavam se preparando para a execução do hino nacional e ela se chegou a mim. Mão no meu ombro. Deve ter falando algo sobre “ontem”,”redação”,mas não pude escutar, pois a moça balbuciava,sibilava, de olhos baixos. Diverti-me com isso. Afinal, minha exigente professora, tão gloriosa no quadro, tão ereta e incisiva, estava agora com vergonha de mim. Era nosso segredo.

Na época eu andava lendo “As aventuras de Tom Sawyer”. E lembrei logo uma frase que o personagem dissera a respeito de sua amada, quando esta cometera um ato vaidoso qualquer: “como as meninas são mesquinhas”. Ou algo do tipo.

É verdade: parece que as mulheres percebem mais cedo o que é vida social, máscaras. Da personagem de Mark Twain à minha profa, todas são vaidosas de suas aparências e compreendem fácil a necessidade de criar e manter imagens. Ridículo, não?

Porque, a bem da verdade, eu nunca zombei dela. Estava carregando um pacote de supermercado, é fato, em um vestido de ficar em casa, mas isso nunca anulou a possibilidade de uma mulher ficar bonita. Ao contrário, nunca a vi tão natural e encantadora. Mas ela teve vergonha. Vergonha de se deixar ver naquele estado (um dos seus estados naturais) por alguém estranho.

Eu me pergunto qual o motivo de as pessoas empregarem energia em esconder dos outros certas coisas que fazem, quando os outros fazem as mesmas coisas e as escondem também. Atire a primeira pedra quem nunca se utilizou de um mercadinho próximo para completar os ingredientes de um almoço, quem não usufrui do prazer de possuir uma (ao menos uma!) roupa velha de ficar em casa. E se eu faço isso e você faz isso, por que eu devo me esforçar para que você não me veja fazendo, e você deve tomar cuidado para que eu não veja você fazendo?

Se pelo menos ela soubesse que ficava mais bonita de vestido florido e sandália havaiana, com seus braços bem branquinhos num esforço engraçado, sua boca jovem, talvez nem andasse tão bicuda metida em seus coletes de rato. Talvez até me desse espaço para fazê-la gostar de mim.

Gosto de lembrar essa história porque esses foram meus primeiros risos sarcásticos. O interessante é que na época não zombei dela, mas do seu embaraço (sem motivo). Hoje sei o quanto esse tipo de embaraço tem razão de ser, lógica interna e sei que é necessidade.

Anos depois, uma tia encontrou por acaso minha antiga professora, e esta lhe disse gostar muitíssimo de mim, e que eu era excelente aluna, mas que não me disessem isso, para eu poder me desenvolver melhor.

Bem se vê que me contaram. Não sei se me desenvolvi conforme ela gostaria. Mas, às vezes, gosto de contar e escrever coisas sem importância como essas.

Jéssica Callou
Enviado por Jéssica Callou em 23/11/2006
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