morreu Cesariny. levou a voz consigo...

a chuva bateu forte na noite, dorida a manhã despertou cinzenta, magoada, castigando o dia sem raios de sol...

na ânsia premeditada de saber o que se passa pelo mundo,

ligo o rádio, procuro noticias.

quando sintonizo a estação que me parece mais credível, oiço as novidades rotineiras de sempre...mais explosões em Bagdad, mais umas quantas tolices do "imperador" Bush, mais desemprego, tanto de percentagem na sondagem sobre a despenalização do aborto...

enjoado com tanto blá, blá crónico, disponho-me a desligar o rádio, quando surge a noticia "bomba". essa, sim, verdadeiramente, uma noticia...

uma noticia digna do nome, mas triste

...morreu esta madrugada em Lisboa, o poeta-pintor Mário Cesariny...

estarreci. senti em mim um baque paralisante...

morreu Cesariny? - interroguei a mim próprio como que ignorando a doença de que padecia já há alguns anos.

já se esperava que a doença e as suas 83 primaveras, podiam, a qualquer momento, ser fatais.

foi o que aconteceu.

morreu Cesariny...

...e eu caio em mim, pensando e olhando os vazios que há minha volta se vão dilatando...

...vazios que nos envenenam com o fel da saudade, daqueles que já não temos por perto e nos amparavam a discussão, a genese da ideia na confusão da opinião...

como amigo do poeta Ary dos Santos, nos longinquos anos sessenta, por duas ou três vezes, presenciei "discussões" e trocas de ideias com Cesariny.

ambos faziam estremecer as paredes d'A Brasileira, no Chiado. um e outro, muito senhores das suas opiniões, enriqueceram algumas das tertulias culturais de fim de tarde que, então, povoavam o próprio café e as Livrarias Sá da Costa e Bertrand.

os néctares de cultura que aí bebi, muito contribuiram para o desenvolvimento do adolescente, a aprendizagem e

consolidação do homem.

morreu Cesariny...

um homem que assumiu de frente as suas ideias, forma de viver e que chicoteou a hipocrisia.

um homem de inquebrantável vontade subversiva, que foi contra a ditadura e contra dogmas.

Lisboa da intelectualidade nunca mais voltará a ser a mesma e Portugal ficou mais pobre.

já são poucos os que restam da transgressão da palavra e do "modus vivendi" pré-estabelecido.

neste fim molhado e triste de Novembro, enquanto espero a minha vez, olho os espaços vazios que tiveram voz e a sombra de grandes homens...

a tristeza avoluma-se.

cada vez mais habito a saudade daqueles que conheci ou com quem convivi.