UMA CANÇÃO NATALINA

Não sei por que motivo, mas sempre olho com desconfiança para o frenesi que toma conta das pessoas durante o Natal. Chego a ter náuseas das propagandas natalinas, principalmente aquelas que anunciam chesters e perus rechonchudos, servidos em belas bandejas prateadas, ornamentadas com toda sorte de acepipes. Fico a imaginar a triste sina dessas aves. Onze meses e alguns dias de felicidade clandestina, confinadas em granjas, obrigadas ao exercício contínuo de se alimentar. Eis que então, ao despertar do primeiro pisca-pisca, seus pescoços dilatados são decepados, e a cabecinha de cérebro atrofiado ainda mantém estatelados os olhos e abertos os bicos, com o único pensamento que as faziam viver: comer, comer, comer.

Saio por aí, sem encontrar nada que comova nesta época. A não ser o presépio. Mas não a figura do menino Jesus, da Virgem sua mãe, dos bichos, ou dos reis magos – Gaspar, Baltazar e Belchior. Fixo meus olhos no pobre José, triste, recolhido a um canto onde a luz não toca, coadjuvante naquela bela história. Sim, José, somos irmãos em nossa resignada solidão. Foste um pobre, José. Calado, aceitaste a gravidez mal explicada de Maria. Ainda assim, abraçaste a nobre missão de ser o pai humano de Cristo, embora Ele sempre recorresse ao Pai Celestial, pouco dispondo dos seus conselhos de homem rude e carpinteiro. Fazia frio naquela noite, e então, para todo o sempre descansaste, José. Um coração puro e simples. Eis o meu exemplo.

A noite avançava com seus moinhos de vento, e o gélido açoite estremecia os ossos. Sei que agora, em alguma igrejinha dessas do interior, badala um sino rouco gritando “é natal”, “é natal”. As pessoas então saem às ruas com pedaços de vela nas mãos. Crianças festejam, pois é o único dia do ano em que não vão cedo para a cama. É uma missa, e toda cidade comparece. As portas estão abertas. Mas sou um forasteiro, já tão despido de Deus pelo caminhar da vida afora, que não me sinto no direito de comungar no seio daquela irmandade.

O cheiro das casas alcança as ruas. Famílias e amigos trocam abraços afetuosos. Crianças avançam sobre os pacotes coloridos, enquanto um papai Noel movido à pilha canta e dança ao som de “Jingle Bell”. Os copos, todavia, ainda estão vazios. Um a um, vão sendo cheios pela garrafa que passa de mão em mão. Erguidos ao ar, os cristais se saúdam e se tocam. O mundo lá fora tem sede, penso. Mas nem todos a saciarão nesta noite. Ainda assim, façamos votos de paz e prosperidade, em que pese as bocas famintas e as balas disparadas do outro lado da cidade. Antes que a comida esfrie, matemos nossa sede ignóbil. Um brinde!

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Goiânia, 14 dez 2006

Glauber Ramos
Enviado por Glauber Ramos em 14/12/2006
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