Antes, Durante e Depois de uma Enchente (Texto verídico)- Cármen Neves.
 
Dia dezoito de janeiro de dois mil e onze, não sabia que seria o último dia de ver como, por exemplo, muitas das fotos de família.
 
Como toda tarde, os dias de janeiro têm trazido chuvas, às quais sem maiores preocupações, ou maiores estragos. Mas, nesse dia, aproximadamente as 19h, o rio que corta o bairro onde moro, transbordava.
Ingenuamente, não pensei que as águas (muito mais que água) fossem atingir minha casa e nem a casa dos parentes e dos meus vizinhos, pois moramos longe do tal rio.
 
O fato é que meia hora depois começamos a levantar móveis e demais pertences, pois a água invadia todos os cômodos de minha casa.
A rua e todo terreno ao redor da moradia, havia se transformado em uma enorme e assustadora lagoa.
 
Saímos de casa com a água perto da cintura, sem sequer fazer um lanche, ou mesmo jantar (nessa hora não se pensa em comer, só que o corpo reclama horas após).
 
Juntamente com familiares e vizinhos, ficamos na chuva, com fome, sentados no final da rua que dá acesso a um morro, olhando sem poder fazer nada(apenas olhar mesmo, a água tomando conta das nossas casas e todos os nossos pertences).
 
Antes de ficarmos “acomodados” nas poucas cadeiras de plástico que alguns vizinhos trouxeram para sentarmos, socorremos duas vizinhas que passavam mal. Ambulância e bombeiros foram chamados e com ajuda de alguns dos moradores, como carregá-las em macas dentro d’água, o socorro foi executado a ambas- o que nos tranquilizou.
 
Alguns de nós sentados nas cadeiras, outros em pé. Todos na chuva, com fome, com frio e com esperança de que a água baixasse. Porém ela veio com sede de destruição e aos poucos, como ladra, invadiu todas as casas da minha rua (do bairro todo) e fazia questão de estragar tudo o que encontrava pela frente.
 
Duas horas da manhã, metade dos vizinhos permaneciam ali, impossibilitados de entrarem em suas casas - nós também. A fome e o frio, presentes. Saímos para achar um lugar onde pudessem comer algo, tomarmos um café quentinho. Tudo fechado.
 
Nessas horas encontramos um “anjo”( amigos são anjos”!). Uma amiga que fora moradora do bairro nos acolheu e nos levou para casa dela. Vestiu-nos com roupas secas, fez janta( isso as duas da manhã), café quentinho (!) e cama.
Permanecemos ali, acolhidos por três horas. O tempo necessário para as águas começarem a baixar.
Novamente um café quentinho as 06h00min e voltamos para casa, esperando ainda, durante uma hora para ela nos permitir entrar em nossas casas.
 
Ao abrirmos o portão, nem imaginávamos o que nos esperava lá dentro. Mas, a lama, os pedaços de madeira e muita sujeira que tomava conta do nosso jardim, anunciavam - nós é que não queríamos imaginar a situação dentro de casa.
Bem, mesmo eu sendo uma autora, minha imaginação apesar de fértil, não foi capaz de imaginar o estrago que a enchente fez.
 
A dificuldade começou ao tentarmos abrir a porta da sala. Além de ter inchada ( todas as portas ficaram assim), os móveis e demais pertences nos impedia de entrar.
Subindo pelos móveis, arriscando cair, foi assim que chegamos em todos os cômodos da casa. Móveis, roupas, comida, fotos, livros ...tv, espalhados na lama dentro da minha casa – PERDEMOS TUDO eu pensei.Porém, conseguimos salvar algumas roupas ( 10%) ,a geladeira, um ventilador, os cristais que eram de minha avô( têm mais de 100 anos), minhas telas e os livros que estavam numa estante bem acima da minha cama.
 
O dia seguinte a enchente foi pior, porque além de tentar lavar algumas roupas, tirar a lama impregnada nelas, o sol não apareceu para secá-las. Além das roupas, com jato de água e produtos para limpeza, o cansaço de ter que ajudar a carregar os móveis para rua.
Pilhas de: móveis, eletrodomésticos, roupas, livros...eram depositados nas frentes das casas.
Perto do meio dia, do dia dezenove de janeiro, um amigo veio nos ofereceu ajuda. Eu respondi:
- Queres mesmo me ajudar? Então, prepara um café com um pedaço de pão para nós. Porque não temos nada para comer e se tivéssemos, não teríamos como cozinhar – estávamos sem fogão, também.
Na hora marcada fomos tomar o café, mesmo sem termos uma apresentação descente – estávamos sujos e com roupas molhadas.
 
O descanso era mesmo só quando parávamos para comer. A comida nos dias seguintes era das marmitas que comprávamos. Nem tivemos como fazer compras, por inúmeros motivos: sem roupa, sem calçado, sem lugar para guardar...sem força física e mental e sem ânimo.
 
Dormimos no carro, pois estávamos sem cama e sem colchão. Sim, a minha cama estava no quarto. Mas, o colchão todo molhado.
Dentro de casa o mau cheiro que a enchente trouxe, era impossível permanecer dentro de casa por mais de alguns minutos.
 
A cada dia que nascia a esperança do sol para nos ajudar, era algo apenas que ficava na esperança. Roupas cobriam os varais existentes e os improvisados.
Ganchos de roupas eram substituídos por cabides, pelo espaço proporcionado nos varais.
Pessoas em frente nossas casas, resgatando quase tudo o que havíamos deixado para ser recolhido pela prefeitura – máquinas retiraram o nosso “lixo”.
Para ter uma ideia, havia alguns pacotes de açúcar no nosso armário FECHADOS, só que a água da enchente conseguiu penetrá-lo – confesso que não sei como. A água se instalou dentro deles e sequer um furo fora feito.
O mais estranho e triste, era ver pessoas carentes recolhendo essa comida e levando para suas casas.
 
A Defesa Civil da cidade passou de casa em casa nos cadastrando, isso na semana seguinte. Ao dar os dados à moça, chorei pela minha situação em ter que aceitar o que eles ofereciam: cesta básica, colchões e material de limpeza. Jamais passara por uma situação desse porte. E, jamais queria ter passado.Mas, sempre há o que aprender  com situações como essa.
 
Recebemos a cesta básica e o material de limpeza, um dia após o cadastramento. Porém, uma semana após a enchente.
Vi na fila que se formou em poucos instantes, meus parentes e todos os vizinhos e conhecidos do bairro – triste cena.
 
Comecei a receber doações desde o dia vinte de janeiro, dois dias após a enchente. Colchões, móveis, eletrodomésticos, roupas, roupas de cama, mesa e banho, algumas cestas básicas, calçados e até dinheiro. Amigos fora da cidade e até no exterior fizeram questão de ajudar – Por isso que eu digo que AMIGOS SÃO ANJOS QUE DEUS COLOCA NO NOSSO CAMINHO!
 
Familiares compraram tintas e móveis e em mutirão, juntos pintamos a casa e tudo começou se ajeitar.
 
Soube através de relatos dos meus vizinhos que, não receberam ajuda de ninguém da sua família. E que pessoas que tinham tudo dentro de casa, tiverem que catar alguns móveis nas ruas do bairro.
 
TODA doação recebida eu dividi com meus familiares (tenho meu pai e minha irmã mais nova que mora perto de onde moro), com meus vizinhos e pedi para repassarem aos demais atingidos.
 
DICA DE DOAÇÃO: Não entreguem à doação roupas furadas, rasgadas e nem sapatos sem sola, ou arrebentados.
Sim, eu recebi os itens citados. Mas, em compensação ganhei vestidos lindos( um dos quais visto hoje) que conseguiram elevar meu astral. Recebi também bolsa de couro muito charmosa. Não, não estou citando bens materiais até porque não dou valor a eles. Talvez por isso a enchente não tenha me abalado. Cito-os para dizer que eles fizeram bem, em meio a tanta tristeza.
 
Claro que senti pena de perder meus livros e fotos, por exemplo. Os únicos pertences que me fizeram sentir pena de jogar fora foram minhas revistas e linhas de bordados. Parece bobagem, mas senti mesmo. Recomecei meus arquivos comprando algumas revistas essências, como por exemplo, de monogramas, em sebos e na amiga de todos internet. (rs)
 
 
Informação: Eu perdi todos os trezentos exemplares que havia sobrado do meu quarto livro, O Sapo, a Bruxa e a corrente do Bem, os quais sua venda me proporcionaria à publicação do próximo livro. Mas, não estou triste, porque acredito na força do Universo.
 
Teria muito mais a dizer. Mas, por hoje, chega de tristeza.
Bom fim de semana!
Apenas uma dica: não se prenda a bens materiais, porque uma enchente, por exemplo, pode tirá-los de ti, da noite para o dia.



* Foto do meu bairro