Viagem à uma noite de Natal
Tere Penhabe

Meia-noite... noite de natal...
Entro no planeta imaginação, calmamente adentro minha nave do tempo e viajo. Vou para longe, muito longe, num lugar que me parece estar longe demais do horizonte, por isso o deixei algum dia.
Chego numa rua meio morta, pouco iluminada por luzes amareladas e janelas acesas... a casinha branca está lá, intacta.
Do lado esquerdo do portão, o pé de manacá enfeitado com luzes coloridas, suas flores brancas exalam perfume tão bom!
As luzes piscam frenéticas; parecem homenageá-lo pelo perfume que exala.
Dentro da casa, vozes e risos, barulho de pratos e talheres... é natal!
No aparelho de som, um disco roda sem parar tocando "Boas Festas"... quando acaba a música, tia Zinha vai lá e volta
pra tocar de novo... quase sempre a mesma música... sua filha lhe dirá muitos anos depois, que ao ouvir aquela música, sempre se perguntava porque o papai noel nunca vinha para sua mãe.
Ercília ralha com o filho, dizendo que se ele não ficar bonzinho, tia Zinha não lhe dará o seu presente. Ele faz um muxoxo e diz que só quer se for o maior... como sempre.
Um homem de meia idade come em silêncio, de vez em quando levanta o olhar e sorri para Tia Zinha dizendo que o peru está muito bom. Rapidamente desvia o olhar para a mãe, num elogio também ao seu pernil, como se temesse ser censurado por não elogiar tudo que o rodeia. Henrique... mas todos o chamam de Rique, irmão da tia Zinha... tão calado quanto bonito. Forte e saudável, parece que nunca morrerá...
Sua esposa, como sempre, fala sobre dinheiro... dinheiro... dinheiro... até que ele ergue os olhos timidamente e pede que ela deixe o assunto para amanhã... ela obedece.
Na parede, um quadro antigo com a foto de um casal... uma noiva bonita de cabelos negros e olhos grandes, e o noivo também bonito, com um bigodinho fino, horrível mas ao estilo da época. A noiva está sentada à mesa agora, é a matrona dessa família. Mas o noivo não está... foi embora já há algum tempo, e só vem quando adoece, quando precisa ser cuidado, e suas muitas amigas dos bailes da terceira idade não se dispõem a isso.
Um dos homens à mesa, come rápido para poder ir para a sala, tomar o seu centésimo aperitivo do dia. Bebe socialmente... mas talvez desconheça o significado da palavra e pense que o sinônimo é frequentemente.
Ainda não é meia-noite lá . À meia-noite poderão abrir os presentes que se encontram na árvore de natal, num canto da sala. As crianças mal contém a curiosidade, os adultos olham de esguelha, como se não estivessem interessados... mas estão. Todos estão, com exceção da Tia Zinha, que só ganha presente da mãe, porque todos acham que ela não precisa.
Mais tarde ela irá ganhar de sua irmã também, mas só bem mais tarde.
E ela coloca etiquetas nos presentes, para facilitar e agilizar a distribuição, pois é muito tarde, precisam dormir.
As crianças dificilmente conseguirão, excitados pelos presentes, mas no fim acabam sucumbindo ao cansaço.
Antes de lavar a louça, ninguém pode se aproximar da árvore, ordens são ordens e são para serem cumpridas. Portanto, as mulheres são prestativas e rápidas na tarefa.
Logo depois, começa o furacão de papéis e barbantes dourados sendo atirados para longe... carrinhos barulhentos só poderão funcionar amanhã de manhã, lá fora... mas podem ligar um pouquinho pra ver como é... os sapatos servirão, foram experimentados pelos seus respectivos donos na loja, mas depois embrulhados para serem entregues junto com os brinquedos... o Rafa como sempre terá um sapato dois números maiores que o seu pé; a mãe dele, irmã da tia Zinha, quer assim... coitado, algum dia ele vai crescer, trabalhar, comprar os seus próprios sapatos e então não precisarão ser tão grandes e ficarem fazendo aquele barulho de choc choc pela casa...
Janaina sorri, aquele sorriso largo e contagiante, mesmo antes de saber o que ganhou... sorri sempre! É uma criança bonita, muito bonita!
Rose também é bonita, porém não sorri com facilidade, parece de mal com a vida, quando muito esboça um sorriso mal feito que parece pior do que a cara feia. Mas fica feliz também, à moda dela...
Luiz Henrique ganhou o presente maior. Não era tão grande assim, mas tia Zinha conhece o seu gado e embalou numa caixa grande. Ele é facilmente convencido, apesar de criador de caso.
A mãe de todos empilha os cortes de tecidos que ganhou para guardá-los depois. Morrerá algum dia e ainda não terá feito vestidos de todos eles. Seus tecidos serão distribuídos, alguns devolvidos a quem a presenteou...
Da filha Zinha, ela ganhou a máquina de lavar Brastemp, porque se recusou terminantemente a usar o tanquinho, pois o danado estraçalha as roupas. Mas ainda não entregaram a máquina, só chegará lá pelo meio da semana, vem de Itapetininga, sei eu lá porque...
Aos poucos, o barulho vai diminuindo, alguns cochichos pra lá e pra cá, e tudo vai se acalmando. Todos vão se deitar...
Eu saio silenciosamente, entro na minha nave e volto para a realidade.
Aqui, eu continuo sendo a tia Zinha... mas cadê todo mundo...?

Santos, 25.12.2006
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