DA ARTE DE FAZER CARTAS

I

Quando li pela primeira vez Cartas a um jovem poeta, senti que seria difícil para mim escrever uma carta para alguém, a partir daquele momento. Eu, já então poeta, sabia que um poema às vezes aparece em nosso caminho e não dá par não escrevê-lo. É saber olhar com todos os sentidos e lá está ele, garimpado do acaso. Depois é só trabalho de linguajem, com uma pitada de talento (quando se tem, é claro). Mas para escrever uma carta é preciso ter muita afinidade e algo mais que conhecimento.

Li aquelas lições de Rilke sem duvidar. A cada página, eu achava que não devia me aventurar a escrever para ninguém. Depois, vieram do Mário de Andrade para o Manuel Bandeira; também li as de Lou Andréas-Salomé a Freud; as Cartas a um amigo alemão, de Camus; as Cartas a Milena e Carta ao pai, de Kafka. Foi aí que eu reli alguns rascunhos que eu guardava de minhas cartas e resolvi que escrever cartas era para outros escritores. O que iriam pensar os críticos do futuro, diante do meu espólio literário, ao encontrar uma correspondência tão pobre? Salvei a pátria com a poesia e com alguns contos, pelo menos a minha pátria particular. Como poeta fui menos prudente. Publiquei com regularidade em jornais e revistas e suplementos literários pelo Brasil. Fui aprendendo na marra, trilhando os caminhos desse gênero tão difícil e tão maltratado por tanta gente. Hoje, tenho a calma necessária que requer o poema. Para falar a verdade, a poesia é o motivo que muitos escolhem para viver nas grandes cidades ou na quietude dos rincões mais distantes, a poesia salva a gente do caos e do tédio. São poucos os contos. A miragem do espelho só pode ter sido sorte mesmo!

II

Por falar em sorte, algumas vezes eu precisei muito dela. Muitas vezes ela me faltou. Se pudermos pensá-la por duas óticas distintas, a marxista e a espiritualista, veremos que, para a primeira, a sorte sempre estará do lado da classe dominante; os oprimidos, numa sociedade dividida em classes, nunca terão a sorte dos que os oprimem; assim como os que não crêem em Deus, e no que representa para as salvações, estarão condenados a ficar fora do céu. Que falta de sorte!!!

Eu, caro leitor, sou originário da plebe. Meus pais pouco souberam das letras e tem meu pai uma "fé" cega nos dogmas da igreja. Como criança não tem fé religiosa, porque não precisa, eu sempre vi a sorte do outro lado. Foi difícil transpor as barreiras sociais: os muros eram sempre altos, as vitrines intransponíveis, os sabores imaginados apenas pelo cheiro que tinham. O tempo foi passando e não havia muita chance para um

estudante pobre ter sorte na vida. De repente, não mais que de repente, a poesia me sorriu numa esquina. Ela

tinha olhos verdes e um corpo inspirado em alguma deusa grega. Eu falava a sua língua, mas não sei se ela entendia o que eu falava.

Depois deste epísódio, descobri mais uma coisa: há mulheres que são pura poesia. Nunca mais deixei de vê-las com olhos poéticos. Mas, voltando à sorte - lá vem a mão do destino ou a sorte pelo avesso -, tive que escrever uma carta. Como faria? Como poderia mudar o destino de um jovem oprimido por um sistema que detesta sonho de plebeu? A carta era uma solicitação para um determinado órgão, coisa obrigatória numa das fases de um concurso. Ora, eu estava desempregado. Já havia passado na fase inicial do concurso, restava a carta. Depois, o emprego. E o emprego, segundo os manuais burgueses, é a chave da felicidade. "E sem o seu trabalho/ um homem não tem honra/ e sem a sua honra se morre, se mata", bom, mas isso é o que diz o poeta/cantor.

Neste intervalo de sorte pelo avesso, a sorte que andava meio sumida trouxe-me a notícia de um concurso para professor. Não dei sorte par o azar, fui (vim), deu certo, e agora estou escrevendo para você, meu caro leitor, para ver se nos tornamos cúmplices, daqui para diante.

Ufa, afinal saiu uma carta!

Gildemar Pontes
Enviado por Gildemar Pontes em 10/07/2005
Código do texto: T32846