O PRIMEIRO DEZ

Lembro-me como se fosse hoje, aquele momento que marcou minha história. Numa sala de aula qualquer da vida, depois de tantas aulas de português: finalmente a prova. Estava no primeiro ano do Ensino Médio e, confesso, desesperado após tantos anos tentando; lutando; buscando um bom desempenho sem alcançá-lo. As mesmas notas baixas, o mesmo rendimento fraco, enfim, a maçada de sempre. Embora mudasse de série, permaneciam os mesmos baixos resultados. Foi assim que aquela avaliação tornou-se um divisor de águas para mim.

No momento da prova, vinham-me à memória todas essas coisas anunciar-me mais um iminente fracasso. Tempo perdido, energia gasta, mãos e olhos esgotados de tanto escrever; ler; discutir; o corpo todo se debatendo em meio a um abismo de conhecimento vão. Minha história teria aqui seu epílogo, não fossem aqueles olhos iluminados de uma esperança morna que me resgataram da perdição... Era minha mestra pessoal. Num vago vislumbre, pude perceber em seu rosto a preocupação quando me entregou o documento. Suava, olhando para os lados, transparecendo um nervosismo maior que o meu - o pobre que agora passava os olhos pelas questões, atônito e desconcertado. Como poderia decepcionar uma criatura assim divina que tanto me ensinara até ali?

Aquele ano fora para mim um período de grande aprendizado na Escola. Diria que o melhor dentre todos os outros em que permaneci no Ensino Médio. A cada noite aprendia mais, juntamente com o resto da turma, deixando o colégio sempre com uma lição valiosa. E se digo valioso, não falo somente de português, mas de vida; resultado da interação mágica que tínhamos uns com os outros ali. E o que dizer dela, a melhor professora que tive nos estudos? Suas palavras faziam-me refletir acerca do verdadeiro propósito de estarmos ali, numa sala abafada e sufocante. Cerca de 50 pessoas enclausuradas por quatro horas diárias, ouvindo e meditando tanto sobre tantas coisas aparentemente vãs. Ninguém entendia nada mesmo! - Era o que julgava minha tola mente, ainda menina naquela época. Mas a prova final agora estava em minhas mãos e ela aguardava o resultado do trabalho realizado com tanto afinco e admiração. Não era tempo de desfalecer. Então peguei a caneta e comecei...

A primeira e a segunda questões surpreenderam-me. Bem elaboradas, palavras muito bem arguidas, termos sóbrios que me pareciam dispostos sem a menor dificuldade: A resposta estava clara diante de meus olhos! Terceira e quarta questões, agora discursivas, acompanharam o caminho das anteriores. Eu ri-me ao perceber a intertextualidade que ela introduzira no primeiro parágrafo, relembrando nossa aula anterior. Realmente a sintonia entre professor e aluno estava acontecendo! O quinto enunciado cobrava correlações entre termos literários e seu respectivo período histórico. Neste ponto, precisei esforçar-me um pouco mais para compreender a proposta do texto ali redigido, mas o caminho continuava aberto (era o nervosismo comum em dia de prova). Sexto e sétimo enunciados anteviam respostas objetivas, isto é, almejavam avaliar a capacidade de memorização e logicismo dos alunos. Geralmente era onde ocorriam minhas maiores decepções nas provas, mas continuei bravamente a leitura (ainda que ofegante), muito satisfeito com o que meus olhos então revelaram: B e D. Sim, eram as respostas corretas! Parecia mágica, mas eu não tinha dúvidas de que estas eram as respostas corretas. E sentado na mesa à minha frente, o confiante par de olhos esperançosos continuava a me fitar, transmitindo-me segurança e paz...

Perspassei o oitavo e o nono enunciados num triz. Já nem olhava o relógio: o soar da campainha não era prioridade agora. Fiz um rápido check up pelas respostas até aqui e confirmei, todas pareciam claras e certamente corretas. (Faço um adendo neste parágrafo, esclarecendo que sem o auxílio de “colas” ou “consultas ao caderno”, jamais havia chegado a tal ponto de perfeição numa prova). Agora só restava mais um obstáculo, separando a folha de ofício sobrescrita da glória máxima da nota. A última questão da prova pedia uma redação, solicitando que fosse demonstrado uma exposição do aprendizado obtido durante nossas experiências em sala de aula. Estavam sendo avaliadas tanto a ortografia quanto a coesão e a coerência na disposição das ideias propostas.

Fechei os olhos durante um instante para que o mundo todo à minha volta desaparecesse, ficando somente papel e caneta em minha presença. Nem mesmo a dama do saber ante a mim poderia adentrar aquele momento especial. Minha espada esferográfica finalmente adentrou nos campos de batalha da lauda. Linha a linha, iniciava-se um duelo ortográfico, dissertativo e semântico, em busca do equilíbrio coerente entre pensamento e escrita, enfim, da perfeição. Meu foco não estava numa exacerbada exposição parnasiana da forma, tampouco em herméticas simbolistas circundando as expressões que construíam os parágrafos. Pelo contrário, ansiava pela simplicidade, pela sutileza ao expor pensamentos comuns, embora plausíveis e dignos de aceitação a qualquer leitor que pegasse a redação, um texto que todos pudessem ler e compreender facilmente. E foi o que constatei na redação da jovem.

Com orgulho, desferi meu último visto na prova da estudante e sorri belamente, admirando seus olhos ávidos por meu parecer final. Não sei dizer ao certo em quem se ocultava mais euforia, se em professor ou em aluna. Eu, após tantos anos sonhando com uma metodologia adequada às minhas aulas, desejoso de contemplar meus alunos com o mérito da nota máxima, enfim encontrei tanto o caminho quanto o destino a ser alcançado por meus esforços. Ela, há tanto tempo aluna esforçada e merecedora de reconhecimento, era pobre e marginalizada pela família, Escola e sociedade. Mal sabiam todos que estavam diante de um talento nato, capaz de ensinar ao mundo - ou a um rijo professor como eu - o nobre caminho da educação, do diálogo, do respeito e da humildade para com seus discípulos. Depois que a gentil menina surgiu em minha vida, nunca mais fui o mesmo educador. E quando minha pequenina mestra perguntou-me como havia se saído na avaliação, com lágrimas quentes rolando pela rubra face eu pude enfim lhe dizer, prostrado de emoção:

-Muito obrigado, minha filha. Agradeço-te por teres me concedido a honra, a imensurável honra de dar-te meu primeiro “dez”!