FAROESTES URBANOS

Ele pediu para que não divulgassem o seu nome. Fosse um João, José, Carlos ou Francisco, pouco importava. A gente não prestaria atenção naquilo.

Saiu de casa logo cedo, assim como o fazem todos os trabalhadores, maridos e pais de família por este país adentro – homens de boa índole. Muitos dirão, todavia, que nem todos aqueles que ao alvorecer abandonam o aconchego das moradias são esmerados em retidão de caráter. Grande verdade, como se verá. Mas não o nosso personagem.

Naquele fatídico dia, como quase sempre ocorria, sentiu o corpo extenuado após contribuir para o movimento da máquina do mundo com sua parcela insignificante de força. Mas havia uma tarefa derradeira a cumprir antes do regresso ao lar. No celular, a mensagem da esposa diligente, para que ele trouxesse consigo provisões para o jantar. Na sua humilde intimidade, sentia-se dignificado em cumprir aquela tarefa banal, como se prestasse fielmente contas à vida do encargo que esta mesma vida lhe deu.

Do outro lado da cidade, não se sabe ao certo de que tristes plagas, um segundo homem, feições soturnas e olhos de cão – olhos de não-ser – vagava errante pela superfície do asfalto desde muito cedo. Cara de bicho: os transeuntes, quando não se esquivavam por repulsa, sentiam invadir-lhes a alma o terror quando fitavam aqueles olhos embaciados.

Com o descer da noite por detrás dos edifícios, a besta sentiu a fome dominar o seu corpo humano, em cujas artérias circulava o sangue misturado aos subterfúgios químicos. Na cintura, o revólver enferrujado com o qual abateria a sua próxima presa.

Numa esquina perto dali, assistia ao vai-e-vem dos clientes junto aos caixas eletrônicos do banco. Aproximou-se cautelosamente e esperou que diminuísse o fluxo de pessoas. Agora, um cliente solitário retirava o seu dinheiro do caixa. Neste momento, muitos dirão tratar-se de coincidência ou destino. Idiotice. Nada disso importava mais. O nosso pai de família não permitiria que aquele homem levasse a receita das horas de seu duro labor.

Em vão. Três tiros fatais à queima roupa. Um projétil incandescente – ignóbil pedaço de metal a serviço de toda maldade humana – rompeu-lhe a musculatura cardíaca. Por alguns instantes, um sopro de vida permitiu que desse alguns passos até a rua. Vieram-lhe ao seu encontro algumas pessoas. Como se não quisesse acreditar na morte que já habitava em seu corpo, proferiu algumas palavras de espanto: “Vocês viram? Aquele cara me roubou!”. Num átimo, esvaíram-se os sentidos. Sentou ao chão e ato contínuo, quedou-se morto.

E o que é a vida, por vezes tão burra, afinal? Há poesia em momentos assim? A besta diluiu-se na escuridão feito um fantasma das trevas. O corpo, identificado como sendo de Fulano de Tal, aguardou por algumas horas o rabecão para levá-lo ao IML. Seu nome será devidamente registrado na seção de óbitos de certo periódico – alguém por ali assegurou.

Sim, há poesia em momentos assim, em que pese a dor suscitada pela morte de um homem de bem. Não sem razão, o extremamente lúcido poeta maranhense Nauro Machado sentenciou: “O mundo restará o mesmo sem minha quota de angústia e sem minha parcela de nada”.

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Goiânia, 22 nov 2011.

Glauber Ramos
Enviado por Glauber Ramos em 23/11/2011
Código do texto: T3351047
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