Contratado!

- Agora, podem começar a recortar as revistas. Naquela caixa tem lápis de cor, canetinha e cola. Não esqueçam de desenhar a palma da mão direita na cartolina que está sobre a mesa. Vocês têm dez minutos para finalizarem as montagens.

Na primeira leitura pode parecer a descrição de uma aula de educação artística ginasial ou um curso de controle motor para a melhor idade. No entanto, esta demonstração de “criatividade” foi exigida em uma dinâmica em grupo da qual participei. Sempre me questionei sobre a profundidade teórica que compreende os exercícios de seleção de candidatos aos empregos. Aceito que fontes alternativas de análise sejam utilizadas para aprimorar a “peneira” profissional, mas o que vemos hoje é a ridicularização dos processos e a isenção de culpa dos empregadores sobre as contratações errôneas. “Reclamem com Freud!”

- Um hóspede se engasga com um lagostim no restaurante do hotel. O que você faz?

- Tento desengasgá-lo!

- E se não conseguir?

- Procuro um médico no hotel.

- E se não tiver nenhum?

- Levo ao pronto-socorro!

- E se estiver fechado?

- Pronto-socorro... fechado???

- Próximo candidato, por favor!!!

- Um hóspede arremessa um telefone celular na sua cabeça. Qual a sua sensação?

- Indignação?

- Humm... tente de novo.

- Perplexidade?

- Mais uma chance.

- Raiva???

- Próximo!

Percebe-se nos entrevistadores, cada vez mais engajados em joguetes subliminares e em táticas colhidas na literatura psico-corporativa, a busca pela certeza absoluta em relação às escolhas. Pecam, porém, ao tentar transferir toda a responsabilidade da contratação para as mãos dos entrevistados. Alguns se consideram, até mesmo, moderadores das dinâmicas, responsáveis unicamente pela correta condução dos debates.

- Jorge, pergunte para o candidato ao seu lado qual comida ele gostaria de ser.

- Mas...

- Não fale para mim, fale para ele. Finja que não estou aqui.

- Mas ele já ouviu a pergunta...

- Sou invisível! Invisível!

Certa vez, em um hotel na capital paulista, pediram para que respondesse a um questionário com aproximadamente oitenta perguntas, para a vaga de recepcionista. Obviamente copiadas de alguma cartilha previamente elaborada, os absurdos partiam de perguntas como “Você conhece todas as pessoas do mundo?”, “Você gosta de fazer sexo com pessoas atraentes?”, “Você se sente atraído pela dor?” a questões hilárias como “Você já fez algo considerado sexualmente reprovável?”, “Você gosta de comer?”.

Em outra ocasião, cheguei ao hotel para a terceira fase de uma entrevista para recepcionista, ainda tentando entender a morosidade do processo para função com salário tão inexpressivo. Os três candidatos remanescentes das outras etapas passariam pelo teste de inglês. Cada um comentou durante quinze minutos sobre um tema livre, sob o olhar crítico da gerente de hospedagem e seu assistente na época. Dois dias depois recebi a informação de que havia sido selecionado. Ainda na primeira semana de trabalho descobri que as pessoas que me avaliaram não sabiam falar inglês. Shame on them!

Entre outras esquisitices, já desenhei a palma da mão, escrevendo uma qualidade para cada dedo. Já montei um brasão com recortes, cuidando para esclarecer através das imagens meu passado, presente e futuro. Já virei comida, animal, estilo de música, estado brasileiro, cor, aroma, na tentativa de detectar qualquer distúrbio criminoso em minhas comparações. Fingi escrever cartas a entes queridos, comentando minha alegria ao ser selecionado. Comentei meus últimos livros, filmes, experiências, traumas. Fui questionado se preferia computador à máquina de escrever e qual a vista da janela do meu quarto. Fui interrogado sobre a estória do cinema europeu – a vaga era para auditor operacional. Resolvi exercícios de raciocínio, nada inéditos e vastamente distribuídos pela internet. Enfim, tudo muito... “dinâmico”.

Mês passado, um conhecido de longa data participou de um processo seletivo. Após explicitar sua vasta experiência e capacidade de inovação, ambas invejáveis por sinal, foi descartado com a seguinte declaração:

- Você é bom demais para a vaga.

Ouviu a sentença mudo, levantou-se sem pressa, agradeceu a oportunidade, despediu-se da responsável de olhar raso, acenou com a cabeça para a secretária que se indignava com o Orkut do namorado, pressionou o botão enferrujado do elevador e desabafou:

- Ufa...

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 03/01/2007
Reeditado em 10/01/2007
Código do texto: T335680
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.