Escritos de hibernação

NOITE ETÍLICA: CHUVA / CONVERSA ENTRE DAMNUS VOBISCUM E ERIK SILVEIRA

ES: Pós-chuva? Pós-guerra? A vida é assim: evolução. Seria toda forma de arte escrita um reclame, ainda assim imperceptível para o leitor comum? Um esboço órfão de uma única vírgula. Haveriam nos céus anjos a observar a tortura de minhas mucosas nasais, tão próximo dos que passam através das grades enferrujadas, onde a fétida pestilência é diluída nos cimentados e recende ao sol no árido e destroçado e fracos e revoltados... (risos).

DV: E eu ainda estou debilitado!

ES: Você é um homem de alma poderosa.

DV: E haveriam anjos nos céus observando isso ainda? (tosse) Isso só viria a provar a desumanidade dos anjos. Testemunhas das perversões terrenas, eles poderiam mudar tudo isso. Se este é realmente o esquema eu não quero participar.

ES: Voltemos a um de seus textos, que tem como título “Las Harpias”. O que você lembra de quando o escreveu?

DV: Nada. Lembro-me apenas que na época me propus a escrever um texto satírico. É muito mais fácil.

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O NARIZ DE DEUS ESTÁ PODRE

“Eles gemeram três vezes, neste dia. O espírito do homem disse:

Seremos como um qualquer? Seremos como um qualquer? Foi esta a

palavra do espírito do homem. Adivinhe, sábio. Eu fui engendrado na

obscuridade, aqui eu nasci. Ou então isto não é verdade; isto também não é verdade?”

(Chilam Balam)

Ando nas ruas úmidas do pós-chuva. Passo por quintais

Sentindo através das grades enferrujadas o odor da merda de cachorro

Molhada, diluída no cimentado, recendendo ao sol. Meu estômago vazio e fraco

Revolta-se. Os cães ladram e cagam. Sou escravo de meus pés, que me arrastam pelas

Ruas úmidas da cidade sem imaginar uma só razão, um motivo sequer para ir em frente

Sentindo dos cães o fedor imundo do recheio em suas tripas. Os cães ladram, eu passo e

Eles cagam, e tudo me persegue e me atinge o espírito. Os cães defecaram no universo.

Os cães infectaram meu macrocosmo. Os cães derramaram seu suco fedorento em mim.

O próprio ar foi destroçado.

Haveriam nos céus além das nuvens anjos observando a tortura de minhas narinas

Quando tão próximo dos quintais através das grades enferrujadas onde o fétido material

Diluído nos cimentados recende ao sol no ar destroçado e esvoaça úmido pelas ruas da

Cidade em que caminho de estômago vazio e fraco e revoltado? Haveria um Deus que

Permitisse ao fedor dominar todo o universo como sobras sujas de feira e cadáveres

De microorganismos em ajuntamentos de peste na putrefação das ruas úmidas

De qualquer cidade (tua ou minha) torturando qualquer nariz (teu ou meu)?

Se há divindades que aceitem de bom grado o sacrifício pútrido dos cães

Nas lajes de cimento e proprietários que evitem pensar na profilaxia

De seus quintais que apodrecem e fedem e é onde pisam quando

Saem de seus lares e aspiram o ar impuro e destroçado que

Os rodeia e dizem que são seres humanos e que eles, os

Guias espirituais, estão atentos às suas ações

Qual seria o motivo para recolherem

A merda de seus cães?

Caminho pelas ruas úmidas do pós-chuva

E acredito em anjos muito distantes

Ou então desprovidos de narinas.

Acredito em Deus gripado.

Acredito na sinusite

Divina. O nariz de

Deus está

Podre

Mas

Não importa: no Paraíso não há estômagos

Vazios e fracos para revoltar com seu fedor.

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EXPERIÊNCIA PSICODÉLICA / MADRUGADA DE SÁBADO / OUTUBRO / 2001

A cobaia pegando sua droga e aspirando. Em alguns segundos:

Cobaia: Sem música!

Interlocutor: música baixa?

Cobaia: Sem música!!!

Interlocutor: Não é bom, escrever sobre isso não é bom. A cobaia está ficando nervosa.

Cobaia: Entendi... (The Doors tocando ao fundo) ...sem chance!!! O que está acontecendo? Meu ursinho... (nesse momento fala com inegável tom infantil, como se estivesse tendo de volta sua infância).

Interlocutor: Agora você está tentando zoar. É natural. Pare de falar dessa forma.

Cobaia: Vida, como isso, buraco.

Interlocutor: É necessário, mas nem tanto!!!

Nesse momento a caneta usada pelo interlocutor falha e o que vemos são riscos que vão enfraquecendo folha abaixo. A experiência se perdeu em algum ponto do tempo e seu desfecho se tornou um mistério mesmo para os participantes, os quais, impossibilitados de registrar os principais fatos, perderam-se também em algum ponto, talvez em seus próprios subconscientes. Outro fato que deve ser esclarecido é que tanto a cobaia quanto o interlocutor haviam ingerido uma considerável quantidade de bebida alcoólica antes do ocorrido, o que tornaria ainda mais difícil a tentativa de se encontrar lembranças posteriormente. Mas o que deve ser levado em conta não são os significados sociais e nem tampouco místicos de tais eventos, que por si sós já nos remetem a antigos rituais indígenas. O fator utópico é que deveria ser explorado e meditado mais a fundo nos dias de hoje, em que quase nada funciona como deveria.

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Nota: O Nariz de Deus Está Podre foi escrito em 2001 e está incluído em O Calhamaço das Abstrações Concretas, meu primeiro "livro". Erik Silveira, meu amigo de longa data, foi o responsável pelos demais textos aqui apresentados. Las Harpias, outro texto citado, também faz parte do Calhamaço.

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 29/12/2011
Reeditado em 29/12/2011
Código do texto: T3413084
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