Monólogo

Por apenas um minuto, mãe, volta... A voz entrecortada pelo suplício da vergonha de quem se sente derrotada sai miudamente, como se temesse ser ouvida. Por Deus, mãe, me deixe dizer que... que te amo... Volta só mais um pouco... Não consegue falar, mas aguenta-se para não limitar-se às razões passionais, deseja ser ela mesma e não criar um teatro. Mas desembesta-se a falar, Ah! Mãe, sempre te desafiei por não crer que me amavas, por ciúme, caralho, ciúme mesquinho e egoísta de teus ídolos, queria provar-te que era merecedora de teu orgulho como mulher orgulhosa que eu sou, como tu, e não bastava, a mim, enfrentar todos os impropérios enfiados na minha vida, precisava te vencer... precisava... Caralho, não precisava de nada disso. Nunca consegui, não é verdade? Sei que te rias de mim, depois de uma briga nossa, logo que eu saía e isso magoava-me... enchia-me de ódio quando tratavas-me com desdém por ter cometido um erro, por mais banal e estúpido que ele fosse... Por vezes, quando eu era miúda, eu quis assassinar-te e passava horas, nos meus castigos, laborando planos mirabolantes. Na adolescência, tentava o suicídio e tentei diversas vezes e tentava num ardor juvenil, intenso e cheio de paixão e o mais longe que fui foi encher a banheira e me esquecer das lâminas da navalha do pai algures e a água estava tão quentinha e tive preguiça de sair de lá... Cómico, não é? Tive que amadurecer com essa comédia e procurei vencer-te, provar-te que não passavas duma secretária centenária que desdenha das brinquedos tecnológicos enquanto me tornei uma doutora respeitada, com um futuro brilhante, promissor, invejado por homens anelados de rubis, o que não vale nada pra mim... E somente a ti me bastava provar... E me olhavas por sobre os vidros de teus óculos e voltavas a dactilografar teus papéis naquela velharia infernal, tec, tec, tec, a noite inteira, sem dar importância aos meus momentos importantes... As palavras eram cuspidas numa tal exaltação, numa excitação tão frenética que ela calou-se por um minuto, um pouco assustada até, com o modo como falava. Reiniciou mais calma, falando pausadamente, minha primeira memória é confusa, não é muito clara em certos pontos. Lembro-me da senhora pondo-me de castigo, trancada no quarto algumas horas por ter feito alguma besteira. A princípio me desesperei muito e pensei que chorando e berrando e implorando para sair, iria desenterrar em ti algum sentimento de piedade que ma salvasse e não aparecias. Pedia-lhe desculpas e jurava, jurava me tornar uma boa menina e que não tornava a errar, mas havias me esquecido lá dentro, trancada numa prisão de bonecas no teto, numa masmorra cor-de-rosa. Sentei-me no chão, encostada junto à porta, abraçada numa boneca de pano ou num travesseiro, não me lembro... e chorei, chorei até que não tinha mais forças e a garganta doía e começava a me faltar o ar, apenas soluçava e soltava um chiadinho agudo à guisa de choro. Nesse momento não conseguia discernir qual a gravidade de minha falta e porque estavas a ser tão cruel comigo. Sentia medo, medo em estar só, medo por estar trancada, medo de não me amares e de acabar esquecida ali, naquele quarto pequeno, sem poder mais brincar, apesar de todos os meus brinquedos estarem ali... Aos poucos foi anoitecendo e a escuridão tomava conta do quarto, gradativamente. A cama, a cómoda e o guarda-fatos foram desaparecendo, tudo foi se tornando escuro até que não via absolutamente mais nada. Tentei acender a luz mas eu era muito pequena e não alcançava o interruptor... Eu tinha apenas quatro anos... Tive medo do escuro também... Até então, eu nunca havia sentido tal medo da escuridão e dos seus fantasmas. E eu via os meus fantasmas horrendos e sentia-os, eu podia ouvi-los respirar amplamente, próximos ao meu ouvido, junto ao meu pescoço. Tentei chamá-la para que, pelo menos, acendesses a luz, mas calei-me, num pânico real da tua raiva. Me perguntava, baixinho, pois poderias estar atrás da porta me policiando, por quê eu era tão má, por quê eu não conseguia aprender o que era certo e errada, por quê era tão burra. Era como se, no meu imo, eu te perdoasse como mãe e me culpasse por teres me castigado por ser idiota. Mas eu havia esquecido o que fizera, qual o meu erro, e meu pânico crescia, eu poderia voltar a errar novamente. Meu Deus, como eu não queria errar novamente e ser novamente castigada daquela forma, no escuro e com medo. Rememorava, constantemente, a tua face nervosa ralhando comigo. Fúria, ódio, não sei, foram impressões duma criança. Eu ouvi os seus passos no corredor, caminhando, sem pressa, para a porta do meu quarto, sabia que vinhas até mim, não poderia haver outro destino para ti, não irias para o seu quarto nem passavas para o quarto de banho, era a mim que te destinavas e comecei a tremer. Paraste junto à porta e te imaginava, via teus movimentos leves e lentos, tirando do bolso a chave e pondo-a na porta, os barulhos dos ferros eram como pancadas, e destes duas voltas que senti na espinha e todo o meu corpo esfriou e estremeceu. Senti minha pele congelar no peito e no pescoço e perdi os movimentos num formigamento inconstante. Quis desmaiar, sumir, qualquer coisa como morrer, não queria te ver e aquela expectativa, não saber o que irias fazer comigo foi a pior coisa que senti na vida. Jamais hei de esquecer aquela tremenda confusão de sentimentos. Queria me libertar do castigo mas, enquanto caminhavas pelo corredor, eu rezava para voltares para trás, para desistires de mim... Tu poderias ter mandado alguém, a empregada ou o pai talvez, mas precisavas ver a minha dor, e esse teu prazer sádico era a minha ruína. Juntei as minhas mãozinhas espalmadas com força e me espremi toda em mim mesma e cerrei meus olhos com mais força ainda, como se assim minhas preces seriam atendidas mais prontamente, para meu anjo acordar, se estivesse dormindo, eu corria perigo, precisava dum milagre rápido... E não abriste a porta... Apenas dissestes que eu já podia sair do castigo, fria e secamente, mais nada. Já podes sair e pronto, novamente o silêncio... Não imaginas com qual ardor eu repetia obrigada, Jesus, obrigada, Jesus, obrigada Jesus e voltava a chorar, não por haver terminado o castigo, mas por não teres aberto a porta, por não teres visto meus olhinhos com medo de ti... Não me lembro de muito mais, devo ter dormido ali, encolhida com vontade de mijar e chorando...

Acendeu um cigarro e levantou-se da cama andando pensativamente, pensando vagarosamente procurando encontrar uma lembrança esquecida em lapso ou algo que sirva como cinzeiro, olhando para o cigarro e degustando o novo castigo de ter de encarar mais uma vez sua mãe, sem chances de vencer, perdendo-a. A senhora sempre condenou os meus vícios, mesmo nada dizendo sobre eles, ou sobre qualquer coisa referente a mim. Alguma vez proferistes um palavra de júbilo sobre mim? Certamente me lembraria se o fizesses... Quando entrei pela porta da biblioteca com um cigarro na boca, achava que não estavas em casa. Mas te vi ali e comecei a sentir-me imprecisa, surreal. Tu te compenetrastes em mim, ficastes me olhando por um tempo e eu fazia que não me importava contigo, que não estavas ali mas estavas. De imediato perdi o que buscava e, para desvencilhar-me rapidamente daquela situação, tomei um livro qualquer e fiquei a examiná-lo. Buscava ser natural mas as letras impressas brincavam bêbadas em minha frente. Virei-me e saí e olhei-te de relance no instante em que tornavas naturalmente a retomar a sua leitura... Não me censurastes, não falastes, não ralhastes... Conhecias a biblioteca de cabo-a-rabo, de fio-a-pavio, sabias onde encontrar todos os livros sem ver o caminho, tuas mãos seguiam o instinto em precisão e poderias ter vendas no olhos. Todos em casa sabiam disso e depois que entrei no meu quarto, branco como o branco pode ser, depois de, impulsivamente, jogar o cigarro pela janela pois me sufocava com a fumaça que entrava pelo nariz e meus olhos ardiam e já lacrimejavam pela irritação que a mesma fumaça provocava e quando li o título do livro que peguei, li as tuas palavras não ditas, a tua censura e condenação, a tua vitória. Dostoievsky com o belíssimo e primordial, o providencial, O Idiota, a idiota em potencial com meus brios e minha soberba... E tive tanta raiva de saberes de cor os lugares dos títulos que não devias saber. Cresci, amadureci e me casei e continuavas me tratando de forma alguma... Se houvesse decidido ir parar num convento, nenhuma palavra, se fosse uma puta declarada tampouco, então, como poderia cuidar que me amavas, caralho... Todas as surras e brigas, toda essa merda que nós duas vivemos e não pude desenterrar de ti um pouco de compaixão e amor ou pelo menos um pouco de interesse. Eu não tive mãe como todas as pessoas dizem ter, eu tive uma governanta que direccionada meus caminhos conforme seus interesses, no intuito de agradar o patrão. Fui parida dum ovo, merda, duma galinha qualquer que despertou a piedade de meu pai. Não fossemos tão parecidas fisicamente, julgaria ter sido achada numa lata ou num cesto, mas seria bom demais. Apressei meu casamento para fugir de ti, porra, e quando meu pai morreu, senti-me só e perdida, terrivelmente destruída, e te odiei por não teres me afagado, por teres partido, caralho... Mas de que adianta falar agora, estás morta, merda, e eu é que tenho que gramar com isso sozinha... E é como morrer também...

Antonio Antunes
Enviado por Antonio Antunes em 09/01/2007
Código do texto: T341570