Da Lama Ao Caos

“Olhem o tamanho do buraco! Haverá alguém vivo? Nunca vi nada igual! Não desliguem!”

Ainda perdido entre tantas informações emaranhadas tento traduzir a respiração falha do repórter. Percebo que o operador de câmera sofre, esforçando-se para manter o equipamento estável, enquanto segue sua dupla de trabalho. As primeiras imagens em plano fechado não me convencem. Estalo o controle e entendo o porquê da comoção televisiva. Uma enorme cratera, de perverso apetite, engole carros, caminhões e pessoas. Sobre ela, um majestoso guindaste mostarda se equilibra, ilhado na única parte que sobrevive ao desastre. Amedrontado.

As causas e proporções do incidente, catastrófico nas transmissões, são debilmente comentadas. O alvoroço da mídia, engalfinhada nos gráficos do Ibope, tenta transferir a tensão do local para as antenas. Em pouco tempo, teorias precipitadas são criadas para decifrar tamanho caos. Chuva, falha humana, engenharia complexa, fatalidade, imprevisibilidade arquitetônica. Até mesmo o posicionamento do rio foi criticado. “Sou inocente!”, diria ele, entre lágrimas barrentas.

Conhecemos os familiares das vítimas sugadas pelo solo. Sonhos, esperanças, fetos em formação, fé, realizações, planos, mais fé. A imprensa, movida pela fértil audiência fora de época, apóia-se na dor alheia para capitalizar suas imagens. Moradias demolidas e choros impotentes se mostram mais atrativos do que terra sendo removida. Até as roupas separadas pela mulher de uma das vítimas, que deveriam ser trocadas quando ele saísse com vida do buraco, são mostradas . Pudera, explicações sobre bolsões de ar, comuns em casos similares, alimentam a expectativa do lado de fora. Mas a dificuldade de acesso e o tempo acelerado contestam a emoção.

O curioso é que obras deste tipo, quando finalizadas, estampam a imagem vencedora de quem a fez: “Sim, somos nós os responsáveis por este projeto de sucesso! Viva o povo!” No entanto, perante absurda desordem, a responsabilidade escorrega nas falas. Técnicos especializados trazidos do exterior, reforçando a idéia de que o aprendizado terceiro-mundista nunca é completo, avaliarão o desastre. Quem sabe não aproveitam para sacudir as bochechas avermelhadas no nosso Carnaval? Ah, nisso a gente não falha!

Aos poucos são encontradas as vítimas, visivelmente sem vida, e a repercussão se dissolve. A motivação pelo final vendido perde a eficácia quando é confrontada com a realidade dolorosa. A repetição dos boletins instantâneos abre espaço para novas reportagens. Praia, câncer de pele, previsão do tempo. Afinal, lembraram que férias também movimentam a audiência. Assim, depois de atentados de grupos criminosos, ônibus em chamas, alagamentos na capital e acidentes nas estradas, enterram mais uma matéria de final infeliz.

E, entre os escombros, ferragens e poeira, largam a vítima que mais agoniza. Idosa, com sérios problemas respiratórios, caminhar lento e afundada na própria ferida. A cidade de São Paulo.

Mas essa, ninguém vê vantagem em ajudar.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 18/01/2007
Reeditado em 01/03/2007
Código do texto: T351527
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