Crônica à minha terra natal

Tem dias em que a saudade aperta tanto que dá um nó na garganta... Hoje é um desses dias e foi a saudade que me fez embarcar no sonho, viajar até o final da linha de trem Sorocabana e descer numa estação que já não existe mais, na minha pequena cidade natal, também conhecida como Porto Epitácio.

Quando eu voltei lá, pela primeira vez depois da mudança, já estava com catorze anos. E eu prometi, ao me despedir dos parentes, que um dia iria escrever sobre a cidade que amo com profunda gratidão, mesmo tendo vivido tão pouco tempo lá. Mas existe um tempo contado e um tempo vivido. Esta é uma crônica do tempo vivido.

Eu tinha apenas nove anos, quando deixei Presidente Epitácio, para mudar, com minha família, para São Paulo.

Fomos – eu, mamãe e minha irmãzinha Ieda, de cinco aninhos - em uma charrete até a estação ferroviária. Não que faça assim tanto tempo, é que a cidade era bem interiorana mesmo e a charrete era a única forma de transporte público.

Os nossos móveis tinham ido na frente, num caminhão de mudança, pois papai já estava em São Paulo nos esperando. Ele havia comprado uma casa com antecedência.

Mamãe tinha conseguido mandar o vaso de lírios São José, que está com ela até hoje. Mas eu queria que tivessem levado também todos os pés de fruta: abacateiros, cajueiros, coqueiros, mangueiras, goiabeiras, e também a seringueira com as plantas do jardim, principalmente o grande leque que ornamentava a frente da casa.

Não foi fácil deixar os parentes queridos, gente simples e alegre que sabia viver a vida. Meus tios, tias, primos. Meus padrinhos de crisma, tão queridos.

Mais difícil ainda foi deixar a casa que papai construiu com tanto zelo e onde fomos tão felizes, com o enorme quintal, o pomar, o galinheiro, a parreira que dava umas uvas pequenas e azedas naquele lugar de clima quente, divisa de Mato Grosso do Sul, impróprio para este tipo de cultura. Nem tampouco foi fácil deixar amiguinhos de escola. Como era bonita a minha escola!

E os amigos da vizinhança, cúmplices de tantas arruaças: comidinha de verdade feita na lata de goiabada, amendoim passado pelo buraquinho da tábua da casa de madeira do meu vizinho, cabaninhas de folhas de mamona. Eu era estudiosa, mas era levada da breca. Cortei o cabelo da minha coleguinha Denise, tentando fazer uma franja melhor do que a sua tipo ‘Chanel’ e, junto com meu primo Ademir, cansei de armar arapucas para passarinhos e remover os ovinhos de seus ninhos. Nem um pingo da consciência ecológica de hoje...

Eu estava deixando pra trás mais do que uma casa, parentes e amigos. Eu deixava também as horas inesquecíveis em que meu pai sentava-se na espreguiçadeira e nos contava histórias. A varandinha da frente era toda encerada e mamãe dava brilho com escovão. Tinhas três cadeiras de fios de plástico e nos sentávamos lá nas horas de folga, pois naquela época, as pessoas tinham tempo para descansar, contar causos e rirem sem reservas.

Ficavam para trás os doces sabores de infância, que comíamos sem culpa alguma, desde o sorvete de abacate da venda do Seu Seabra, os pirulitos de guarda-chuvinha e o quebra-queixo, até os doces caseiros de mamão verde, abóbora e goiaba, sempre guardados em compoteiras de vidro. E tinha um pão caseiro feito no fogão econômico (à lenha) que era divino.

O charreteiro seguia adiante, impiedoso, o cavalinho trotava levantando poeira e eu ia olhando para trás, para as ruas planas, longas e arborizadas dos quarteirões cuidadosamente planejados da minha cidade, com postes de madeira instalados no meio da ruas e que à noite acendiam suas lâmpadas amareladas e nós brincávamos descobrindo desenhos nas nuvens, vendo estrelas cadentes, catando vaga-lumes, brincando de pega-pega, de boca-de-forno, de duro-ou-mole e de tantas outras brincadeiras.

Passamos pela praça e lá deixávamos também a Igreja Matriz, a fonte luminosa de águas dançantes e coloridas e o jardim que abrigava namorados, pipoqueiros e crianças. Tinha até um cinema em frente à praça.

Mamãe, uma mulher forte e corajosa, ia sem derramar uma lágrima. Tinha que administrar uma viagem longa e cansativa com duas meninas pequenas e ainda sem o marido. Era um grande desafio!

A previsão de chegada era apenas para o dia seguinte.

Quanto a mim, ia me desmanchando em lágrimas. Dividida entre a vontade de ficar e a vontade de ir. Sou assim até hoje, metades da alma em lugares tão diferentes.

Subimos no trem e, quando ele seguiu soltando um apito, pude ver o rio Paraná que para trás ficava. De tudo, era do rio que eu mais sentiria falta. A cidadezinha foi ficando pequeninha, até sumir de vez do meu campo de visão. Voltei lá várias vezes e ainda volto, de tempos em tempos, pra rever os parentes. Nem eles, nem a cidade, nem eu nunca mais fomos os mesmos. A menina ingênua perdeu-se no tempo e talvez hoje, mais do que a saudade das coisas que lá deixei eu chore pelo elo que se perdeu de mim. Pela metade afastada de mim. Está lá ainda, eu sei, a me prender com laços tão fortes a um lugar que eu nunca deixei de amar.