A moça loira

Sentada com as pernas cruzadas e a cabeça levemente virada para a direita, uma moça muito loira e muito bela olhava languidamente pela janela. A cada solavanco do ônibus seus cabelos balançavam com leveza... uma cena inspiradora.

Sentado dois bancos atrás, eu a observava. Idéias para sonetos surgiam enquanto eu tomava coragem para sentar ao seu lado.

Até que o assento foi ocupado. Era uma menina muito feia e maltrapilha, moradora de uma espécie de “mini-favela” que havia por perto. Entrou no ônibus por debaixo da roleta, mascando chiclete com a boca aberta enquanto chacoalhava a cabeça na esperança de que seus cabelos sujos e emaranhados esvoaçassem. Deveria ter uns onze anos, mas já tinha corpo e jeito vulgares. Trazia uma caixa com pacotinhos de jujuba.

- A moça quer comprar uma balinha?

- Quanto é?

- É duas por um real. Aceito passe.

- Vê uma, então.

- Brigadu... a moça é artista de novela?

- Não, ha ha .

- É que a moça é muito bonita...

- Mas não sou atriz, não. Trabalho numa loja no shopping.

- Sabia que eu tenho uma irmã que trabalha numa loja também? Ela é loira feito você.

Quase pude visualizar a cena: os cabelos oxigenados com um palmo de raiz preta. Um buço igualmente preto e um corpo ainda mais vulgar do que o da irmã mais nova. Me pus a pensar que raio de loja aceitaria alguém desse nível... Antes de arrumar esse emprego, ela provavelmente já fez uma centena de bicos: vendeu bala em ônibus, limpou vidro de carro em farol (a profissão mais detestável do mundo: os vidros ficam imundos e ainda temos que dar um trocadinho como pagamento por um serviço péssimo), pediu esmola... e já... ah, já deveria ter dado! Por dez reais, talvez cinco! Senti repulsa.

- Quando eu tiver da sua idade quero tá na televisão. Ser famosa, sair nas revista...

- É mesmo...?

- É mesmo! Você que tinha que ser artista. Cê é muito bonita, parece a moça da novela das oito, aquela que trocou o Felipe pelo Thiago porque o Felipe tava saindo com a melhor amiga dela, que na verdade só quer o dinheiro dele porque ela é muito ruim, ela não presta, não.

Fui tomado pelo ódio: desejei que aquela menina não existisse, que tivesse morrido com uma semana de vida, ou que tivesse tido uma overdose de crack uma semana atrás; desejei que não existissem novelas, que não existissem televisões nem água oxigenada para vender nas farmácias! Desejei que nada disso estivesse acontecendo e que o assento ao lado da moça loira ainda estivesse vago... Por que essa garotinha imbecil não se contentou em vender a bala e ir embora? Por que ela fica enchendo o saco com esse papinho sobre novelas?! Tive vontade de espancá-la, de matá-la, de arrancá-la daquele banco e quebrar sua cara feia!...

Um segundo depois fui tomado por uma culpa muito grande... coitada da menina... tão pobrezinha, ter que vender bala em ônibus... tive pena. Sofri intensamente durante alguns instantes (doze segundos, para ser mais exato): acho que dói mais em mim do que nela. A coitada é tão burra que nem percebe sua situação. Também quer saber? É por isso que esse povo não sai da merda! Se ao invés de comprar uma tevê para ver novelinha, a família tivesse guardado o dinheiro, hoje poderiam ter sua casinha, suas coisinhas. Lembrei do meu avô, que chegou da Itália sem nada e foi construindo tudo com trabalho, com honestidade e cabeça no lugar.

Orgulhoso da mais profunda reflexão sociológica que eu já fiz na vida, me senti leve. Mas logo percebi que de nada serviu: a menina ainda continuava no assento que deveria ser meu.

- A moça mora onde?

- Moro em uns prédios azuis perto daqui. Sabe onde fica?

- Sei sim... uns prédio chique, né? Só deve ter aqueles pessoal bem rico, igual de novela... tem piscina?

- Tem uma pequena, pras crianças.

- Ai, eu gosto muito de piscina, daquelas bem grandes, com as cadeiras em volta. Aí a gente deita pra tomar sol e deixar marquinha de biquini, igual às artista de tv.

Impaciência. Batia os pés no chão, olhava para o lado, para o teto, e nada conseguia me acalmar. Senti vontade de puxar a menina pelo braço e gritar no seu ouvido que ela nunca seria “artista de tv”. Quis lhe mostrar suas roupas esfarrapadas, seus cabelos desgrenhados e todas as outras características que fariam dela uma vendedora de balas para sempre. Assim, talvez ela parasse com essa amolação, talvez ela parasse de se encantar pelos cabelos louros naturais e pela beleza da moça ao seu lado, levantando-se e deixando o lugar livre para mim.

Questão de quatro segundos para eu me sentir culpado novamente. Os valores de piedade e doçura que minha família de classe média me passou me impediam de fazer algo assim. Senti uma pena muito grande... pobrezinha, pobre coitada, tadinha, que dó... Um ímpeto de caridade me fez abrir a carteira e tirar uma nota de um real de dentro dela. Quando eu lhe entregasse, ela ficaria tão feliz que seus olhos brilhariam. Daria um salto e me abraçaria: “Brigadu, tio. Agora vou poder tomar um lanche!” Saltaria correndo do ônibus em direção à padaria mais próxima, salva pelo “tio”. A moça loira me olharia admirada, sorriria e faria um gesto para eu me sentar ao seu lado...

A idéia me pareceu boa, mas logo desisti dela também. Afinal, a culpa não era minha! Se a moça loira não ficasse puxando assunto com a menina, eu não estaria passando por tudo isso...Senti que não valia a pena. Meio segundo depois senti que nada valia mais a pena do que tentar algo com aquela moça...

Nos últimos três minutos senti tantas coisas que perdi o controle. Comecei a chorar.

Fiz um sinal para o cobrador e desci assim que o ônibus freou, em um ponto desconhecido, deserto e longe de casa, em uma tal de Rua Brasil.

Dawn
Enviado por Dawn em 25/07/2005
Código do texto: T37410