Passando ‘voucher’ em Bonito

Wilson Correia

Recentemente passei férias em Bonito, MS, a propalada cidade do turismo rural. Éramos quatro casais e queríamos curtir o que nos fosse possível nas duas semanas que por lá bateríamos canela. E batemos! Conhecemos a quase totalidade dos pontos turísticos, sabendo que a vida incrustada em cada um deles não poderia ser assim “tocada à mão”. Trata-se de realidade que o olho abarca, mas não é capaz de reter em sua complexidade e beleza.

Já na chegada, pudemos sentir os efeitos dessa tal globalização, graças à qual o idioma inglês penetra os lugares mais insuspeitáveis. Foi quando o motorista que nos conduziu do aeroporto de Campo Grande até a pousada bonita onde ficaríamos nos solicitou:

– Um momento, senhores! Vou apanhar o ‘voucher’ de vocês.

Com ele longe, os comentários não podiam ser outros:

– E eu pensando que “voucher” era coisa conhecida apenas nos hotéis de Curitiba, Goânia, Salvador, Rio e São Paulo..., disse um.

– Minha professora dizia, ainda na graduação, que a assimilação de uma ideologia começa pela assimilação do idioma do povo que a sustenta, relembrou outra.

– Por que você acha que o inglês é o primeiro idioma da sociedade informática e o segundo de nossa pátria amada Brasil?

– Não só do Brasil! Saber idiomas é ótimo, mas...

E por aí foi.

– Talvez os Estados Unidos, cuja megalomania quer ser “A” América, mereçam: deram-nos a dívida externa na ditadura, para controlar nosso crescimento, de 1964 a 1985; ofereceram apoio ostensivo à nossa ditadura; forjaram os acordos MEC-USAID para nossa educação tecnicista; convenceram-nos de que a educação para o trabalho e para o mercado é a que é melhor para nós; legaram-nos métodos eficientes e eficazes sobre como usurpar riquezas alheias, pelo bem e pelo mal; produziram a teoria da “guerra preventiva”; ensinam como patrocinar golpes, ditaduras e morticínios em mil guerras que promovem ao redor do mundo; abençoaram nossos perseguidos, exilados, torturados e mortos durante nosso regime de exceção; promoveram a exclusão da filosofia de nosso sistema de ensino e travaram-nos o pensamento crítico, entre tantas outras coisas "boas"... claro que, hoje, só poderíamos falar “voucher” mesmo!

Nessa altura alguém lembrou a obsessão, qual transtorno obsessivo-compulsivo, que os estadunidenses têm para com a nossa “Latino América”, a qual, segundo eles, deve ser controlada para não fomentar conspirações contra o “colosso do norte” que eles são:

– Lembram-se de Nicholas Spykman, o geoestrategista que nasceu em Amsterdam, em 1893, e morreu nos Estados Unidos, em 1943, e que é o grande responsável pela política externa estadunidense, essa que nos legou tantas coisas e continua de olho em nós? Spykman escreveu dois livros: “America’s Strategy in World Politics”, de 1942, e “The Geography of the Peace”, de 1944. Para ele, a ameaça –a ser controlada a ferro e fogo– era o ABC sulamericano: Argentina, Brasil e Chile.

Hoje, no ensejo do “voucher”, recupero a fala daquele homem: “para nossos vizinhos ao sul do Rio Grande, os norte-americanos seremos sempre o ‘Colosso do Norte’, o que significa um perigo, no mundo do poder político. Por isto, os países situados fora da nossa zona imediata de supremacia, ou seja, os grandes estados da América do Sul (Argentina, Brasil e Chile) podem tentar contrabalançar nosso poder através de uma ação comum ou através do uso de influências de fora do hemisfério”. Por isso, “uma ameaça à hegemonia americana nesta região do hemisfério (a região do ABC) terá que ser respondida através da guerra”.

Oh, Spykman! Ainda que, recentemente, os estadunidenses tenham feito festa por ocasião do golpe contra Fernando Lugo no Paraguai, parece que não será necessária tanta preocupação com qualquer contraposição latino-americana ao “colosso do norte”: o seu “voucher” está mais entranhado do que nunca em nossa mente, alma e coração –até lá em Bonito, onde um motorista entregou-nos “um voucher” para que pudéssemos adentrar a pousada e apresentar o recibo da viagem ao balcão do “check-in”.

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"Que língua é essa?

Roberto Gomes

A primeira vez que ouvi falar em “voucher” foi numa conversa com uma dessas telefonistas de hotel com voz de robô assexuado. Fiz uma reserva, mandei comprovante de depósito e ela me disse que me mandaria o voucher.

Distraído, levei um susto. Eu não havia encomendado nada, muito menos uma coisa que se chamasse voucher. Perguntei do que se tratava, mas ela apenas repetiu:

– O voucher, Senhor. Estaremos enviando o voucher.

Considerando o gerundismo da moça, me ocorreu que deveria ser palavra inglesa. Como minha lembrança era vaga, fui ao dicionário e encontrei:

Voucher – sentido (1) responsável, fiador. (2) comprovante, prova. (3) recibo, certificado, certidão. (4) vale, ticket. Comprovar, dar recibo, certificado ou comprovante. Comprovar com documento.

Tratava-se, portanto, do antigo e conhecidíssimo comprovante, o simpático recibo desde lusitanas eras. Acontece que a palavrinha virou outra das pragas de linguagem que correm pelo Brasil corporativo. Hoje mesmo, numa ligação a um banco, me pareceu reencontrar a mesma telefonista-robô com voz assexuada.

– O senhor vai estar recebendo um voucher – me disse ela.

Fico pensando por qual razão trocar o liso, claro e direto recibo ou comprovante por um trambolho como voucher? Não entendo. Não houvesse palavra correspondente em português, tudo bem. Mas, recibo, comprovante, nada mais corriqueiro, prático e simples. Voucher?

Esclareço aos leitores que não faço parte dos puristas que querem impedir a incorporação de palavras estrangeiras ao vocabulário nacional. Nada a ver com o senador Aldo Rebelo, esse triste Dom Quixote da pureza do português castiço, nem com um certo governador que pretendia decretar o fim de estrangeirismos em anúncios e placas. Sei, por pensar com meus próprios neurônios, que todas as línguas fazem incorporações, aquisições, canibalismo saudável e promíscuo, e que, analisadas com o passar do tempo, todas roubam umas das outras. Nenhum purismo patrioteiro, portanto.

Mas sei também que existem as bobagens, os cacoetes marcados por mera ignorância ou simples pedantismo. No caso, algum executivo gerente de hotel dos EUA deve ter vindo fazer palestras corporativas no Brasil e, no meio do falatório, largou um voucher – que é o comprovante lá deles, não mais que isso – e os deslumbrados daqui descobriram o voucher. A tribo tupiniquim tem dessas coisas.

Certa ocasião, um amigo me provocou defendendo o uso do verbo deletar em português sob a alegação de que não tínhamos palavra correspondente. Era um rapaz inteligente e simpático, mas iludido pela informática. Tive que explicar a ele que havia – além do óbvio apagar – o verbo delir, que significa exatamente apagar, ou seja, exatamente o mesmo que deletar. E mais: deletar tem origem latina. Nunca ouvira falar em “delenda Cartago”? E deleatur? Enfim, pelo que me dizem, deletar vem do latim deletus, particípio passado do verbo deleo. Onde a língua inglesa foi buscá-lo.

Nada contra. Como temos os verbos apagar e delir, deletar só entrou em circulação por conta de uma tecla de computador. Tudo bem. Soa como latim.

Enfim, se é preciso entender que as trocas entre línguas diferentes são justíssimas, é preciso também entender que a língua é um campo de batalha. Tanto é legítimo fazer aquisições, como é legítimo lutar contra aquisições tolas.

O mesmo acontece com palavras portuguesas que, por automatismo, passam a ser uma espécie de cacoete, como no modismo chatíssimo do uso de “diferenciado”. Ora, diferenciado quer dizer apenas diferente, não mais. No entanto, o uso atual força a palavra a significar que se trata de uma qualidade superior. Comentaristas de futebol adoram dizer que um craque é diferenciado. Ora, um perna-de-pau também é diferenciado por ser diferente dos demais em sua ruindade com a bola.

No mínimo, esses tipos que usam demasiado a palavra diferenciado me parecem muito pouco diferenciados. Os que usam voucher, idem.

Não passo recibo".

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/colunistas/conteudo.phtml?id=1241966 - 08/04/2012.