Escravo por um dia

Wilson Correia

Zanzar por aí é rotina de professor. Palestra aqui, conferência depois, o congresso acolá, bancas, viagens pessoais. Quando convidados, com passagens e diárias macérrimas federais, começam verdadeiras experiências desejantes de alforria. Sim! Por algum tempo nos tornamos escravos da instituição solicitante.

Tempos atrás, passei por isso pela enésima vez. Roteiro fechado e escalas a mil. Para ir a região extrema do país, tive de fazer conexão no centro. Depois ficar meio dia no compartimento de carga humana da grande ave, que os mais chiques chamam de “aeronave”.

Já reparou naquela mísera comida dos ares, que agora tem de ser paga? Foi-se o tempo em que humanos voadores eram mais bem tratados em pleno ar. O amendoim aqui, a torrada daqui a pouco. Olho da cara! – como diria minha mãe. Só a água, com pedras de gelo dentro, ainda é grátis.

Eu deveria desembarcar por volta das treze horas – qualquer coisa alvissareira para quem se encontrava prisioneiro desde as sete da manhã. Mas, não. Isso não aconteceu. Ao fazer a conhecida aproximação para pouso, o avião teve de arremeter. Adiou aquele clímax a nos soar sempre como retirada das algemas. Tive a sensação de que as turbinas foram exigidas a duzentos por cento na arremetida.

A segunda tentativa de pouso também teve de ser abortada. E lá subimos, até a máquina ganhar altitude. Em meio àquela sensação de estabilidade, o comandante teve o desplante de dar o seguinte comunicado: “Senhores, senhoras, aqui fala o comandante deste voo. Estamos nos dirigindo até a cidade xis, pois nosso combustível está escasso...”.

“Combustível escasso” foi o fragmento que ficou em nossas cabeças e a paura dava o tom ao espírito daquela prisão. Para encurtar a história, conseguimos aterrissar pertinho de dezoito horas. Eu com o estômago reclamando, porque aquela ração alegada lá de cima mais me abria vontade de comer.

Corri para o hotel, reservado pela instituição que me convidara. Fui logo pedindo suco de laranja e omelete. Após quase sessenta minutos de torturante espera, chega-me o lanche, que devoro de pronto e peço a nota para assinar.

– Quanto? – pergunto com o olho na nota, assustado.

– Isto mesmo: vinte e cinco reais!

– Mas, pelo seu cardápio, isso que comi fica em doze reais.

– Verdade! Porém, como o senhor está pelo convênio com a universidade federal daqui, essa nota só pode ser emitida por vinte e cinco.

Respirei o fundo mais fundo que me era possível:

– Não está correto. É mais que o dobro. Não posso assinar esta nota.

– Só o senhor está reclamando. O senhor é o único a fazer essa recusa – disse-me o gerente, ladeado por meia dúzia de "auxiliares”.

– Não quero saber se sou só eu, se sou o único... não vou assinar.

Uma não muito longa rodada de argumentação e contra-argumentação, e eu bati o martelo:

– Está com sorte, que nem vou acionar o Ministério Público –na minha velha mania de acreditar que as instituições democráticas do meu país realmente funcionam. Mas, faça o seguinte: coloque essa despesa no meu extra. Pagarei com o meu dinheiro. O senhor sabe que esse meu lanche foi financiado por todos os brasileiros, até por quem sequer terá o direito de pisar em uma universidade?

Oh dia! Não bastassem comidas parcas, cagaço com o combustível escasso e tantas horas dentro daquela gaiola, agora ainda tinha que aturar toda essa desfaçatez? Onde está o público e onde está o privado nesse nosso imenso e maltrapilho Brasil?

Enfim, não me alimentei mais no salão do hotel.

Na saída, minha notinha estava lá, para eu mesmo quitar: doze reais.