Sonho de uma noite suave de inverno

Em meio a tanto por fazer, uma pausa para este registro, relato, acrescentando um pouco a sensação do depois e a criação do agora. Acordei como acordam os anjos, se é que eles dormem, tão benfazejos e excelsos os sentimentos que experimento.

Vi eu e minha mãe chegando, procurando lugares. Achamos os nossos na ponta de uma das voltas do semicírculo que fazia a arquibancada. Não subiríamos mais porque entendi o custo do sacrifício e da dor do empenho de minha mãe. Um banco atrás e a visão seria ainda melhor, percebi, mas logo e às pressas os poucos assentos restantes também foram tomados, de modo que ficamos muito satisfeitas com o nosso justo espaço.

Enquanto a plateia se acomodava, uma música pairava no ar “... Chega mais perto, moço bonito/Chega mais perto, meu raio de sol/A minha casa é um escuro deserto/Mas com você ela é cheia de sol...” e aquele som de notas mais graves nos fins dos versos era-me muito agradável. E no palco, ninguém menos do que ele, o grande maestro Jobim! O seu piano branco de cauda, a noite amena de inverno, as luzes entre as árvores _o que ia haver era a apresentação de um grupo de alunos em final de curso de canto.

A primeira que subiu ao palco foi a Fernanda Fernandes, minha recém- amiga do Face que eu tive o prazer , não no sonho,de conhecer no encontro que a Nobel promoveu. Toda de preto, de lábios lindamente vermelhos; toda a atenção para o seu prólogo. Depois veio o jovem ator loiro, lindo em sua capa preta abaixo dos joelhos, sua boina e sua bota das quais pendiam harmoniosas tiras a compor-lhe a silhueta. Fez algumas brincadeiras com as moças por causa dos seus dedos grossos nas luvas, que apesar de toscas( as brincadeiras), tinham lá ainda a sua graça e a sua conveniência. Também não sei o que cantou, acompanhado do Tom ao piano.

Eu aguardava a minha vez. Tinha seis músicas no repertório; uma era de minha autoria, letra e composição; cantaria uma ou duas peças à escolha do Tom. Enquanto aguardava, vejam, percebi que estava com fiapos de manga nos dentes e placa de dormir na boca! Arranjei-me para limpar os dentes e acondicionar a placa num lenço de papel improvisado a ser posto dentro da bolsa. Aquilo tudo, que em outros sonhos seria o desconforto dos pés descalços ou de roupas desconcertantemente transparentes em meio à multidão, ali não me causava vergonha ou vexame; eu resolvia com naturalidade. Via no palco meus amigos e o Tom, mas a convivência e a proximidade eram tais que eu aguardava a minha vez como quem aguarda na guarita o ônibus para o bairro. E ao meu lado, bem, ao meu lado eu tinha a minha estrelinha, a minha guia serena e a minha perene fortaleza: eu tinha a minha doce mãe!

E o sonho acabou assim. Não vi a apresentação de meus amigos nem a minha, pois acordei, mas a sensação era de plenitude, serenidade e muita paz. Não sei o que diriam os psicólogos ou os intérpretes de sonhos, só sei que o regozijo permanece. Deixei tudo o mais para escrever enquanto lembro os detalhes e escolho as palavras que sirvam para transmitir o que tenho a contar. Eu vestia meu vestido molengo azul- escuro de barra de renda marrom-licor, como a cor das meias e blusa segunda-pele por baixo da confortável roupa.

A apresentação de canto parece que fui ‘buscar’ no meu tempo de escola de música, onde, de canto mesmo, fiz lá algum workshop nalgum festival, mas gostava de cantar e arrisquei-me umas poucas vezes. Quando acordei senti que deveria ao menos cantarolar, coisa que não ando fazendo; ficou-me aí a deixa. Também parece que ‘pesquisei’ elementos para esse sonho na recente apresentação, que perdi, muito a contragosto, do filho mais velho, em sua atual escola de canto.

A companhia de minha mãe no evento, eu a ‘trouxe’ da solicitude de toda uma vida, aquela que, no seu silêncio nas despedidas e no seu olhar comprido dizia “_ Vá com Deus, filha, e com minha bênção.”

Não havia no sonho qualquer estranheza; minha mãe e o Tom estavam tão vivos e próximos como me sinto próxima dos meus, vivos e mortos, corações abertos ou ressentidos, distantes ou rentes; pelo menos duas vezes na semana eu os abraço e estreito ao peito e beijo-os na despedida; vivo esse privilégio intensamente nas missas _ o que ensina a Santa Igreja sobre a comunhão dos santos e o que deduzo e interpreto desses ensinamentos.

Pela comunhão e por sonhos raros como esse é que sobrevivo a tanta saudade. E, apesar de tanto por fazer, conforme dizia, como os preparativos para a nossa primeira, grande e longa viagem ao exterior, achei que caberia uma pausa para escrever, pois que se me evidenciavam teor e tema. Não queria que tudo se esvanecesse e caísse no esquecimento. Relembro, com esses escritos, da importância de parar para o descanso saudável, como o meu pai deu o exemplo, entremeando trabalho e pequenas pausas para a brincadeira com crianças ou criação.

Assim, arrumo malas, aprendo às pressas os rudimentos de dois idiomas, ajeito o que vai e o que fica dentro e fora de mim, das malas e da casa e escolho levar comigo, para a viagem e para a vida, esse sólido sentimento de gratidão pelos que muito me amaram e zelaram por construir e nos deixar um legado imaterial e eterno que leva em cima e no alto o nome de Deus.

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 14/08/2012
Reeditado em 15/08/2012
Código do texto: T3830396
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