Trecho de memórias
(de uma sola de sapatos)

"Sensível ao apelo do governo para economia de combustível", minha dona resolveu proporcionar-me uma total mudança de vida.
Eu que me habituara, como se fosse inquilina da boa sorte, a pousar docemente em carpetes, sem sofrer quaisquer danos, sem aturar pedaras e pedregulhos, cobras e lagartos, vi-me repentinamente desviada, de tão suave missão.
A ordem era andar - e eu - o suporte de tudo.
Na verdade, meu despreparo físico era total.
Faltava-me o equilíbrio que a experiência do dia a dia dá às solas operárias.
E a agilidade das solas adolescentes.
E a capacidade de ziguezaguear sob os pés das crianças.
Mas dizia de mim para mim mesma: deve ser assim no princípio, depois a gente acostuma.
A solução era aguentar o tranco.
Na verdade, não me foi dada, qualquer outra alternativa.
Subindo (ou descendo) uma avenida qualquer, vi-me raspada por cacos esquecidos, vincada por calor de asfalto derretendo, queimada por pontas de cigarros, conspurcada pelas imundícies espalhadas pelas trilhas.
Era muito grande a fadiga, quando pude perceber, pequeno recorte de jornal que anunciava:
"Desempregado oferece seus serviços, ou um rim... telefonar para..."
Isso até que serviu para renovar energias.
Deve andar o dito cujo a penar duros dias, contribuindo com sua desesperada parcela de sacrificio para o engrandecimento da Nação.
E quanto entulho, e quantos buracos espalhados pelas ruas e calçadas, dificultam, quando não impedem, o livre trânsito de tantos quantos se atrevem a viver, conviver, sobreviver...
Tentando não perder a relativa dignidade do cargo, pensei no meu próprio epitáfio, curto demais para tanta existência, longo demais para que a alguém interesse.

"E valeu!
Tal como um vagabundo,
sabendo dos mistérios de outras solas,
vi-me irremediavelmente esburacada,
qual mísero leão que já não ruge,
mas solidária com os pés que sustentava...."