O Pagode Ruim

Voltava cansado pra casa. Sexta-feira até tarde no trabalho. Semana cheia, bastante serviço, muitas responsabilidades, compromissos a cumprir e ainda um rabicho de trabalho que sobraria para a semana próxima. Cansado da falta de opções para comer alguma coisa lá pela cidade. Naquele horário era mais fácil se alimentar de cerveja do que achar para comer qualquer coisa ligeiramente saudável. A cidade escura, nervosa e já esvaziada, retirava esperanças de se sentir segura apenas da fé em que todos os bandidos e vagabundos de ocasião naquele momento estariam bebendo, festejando ou procurando avidamente por ambas as coisas. No rosto de todos os que saíram do trabalho tarde, um cansaço semelhante. Cansado do ônibus, que ainda pegou um resto de trânsito no caminho, mesmo tendo saído após o horário do rush.

Caminho para casa, escuro também. Mais vazio que nos outros dias, a sensação de que todos que não tinham ido pra noite, a caminho estavam. Passei pela peixaria, onde o peixeiro de aparência indígena, mas com cabelos estranhamente crespos, fazia a mal-lavada higiene de seu local de trabalho. Passei pelo primeiro botequim, com seus azulejos enormes e alumínios desproporcionais, que dão ao lugar uma aparência engraçada de banheiro de rodoviária ou de posto de gasolina. A habitual coleção de papudos variados, bêbados inchados e além de qualquer ajuda, ou trabalhadores de olhos amarelos com os pés cinzentos enfiados em chinelos rider, a olhar aparentemente atentos para o aparelho de TV suspenso no giro-visão. Na sexta-feira o elenco habitual do primeiro botequim é reforçado pela presença de algumas mulheres, tão peculiares e cinzentas quanto os atores principais da comédia. Chinelos com pequenas flores contrastando com a magreza das canelas e o inchaço das barrigas. Elas sorriem com bocas desfalcadas, times de futebol de salão onde deveriam ser de futebol de campo. Requebram as cadeiras numa imitação das moças talvez até bonitas que tinham sido, impiedosos e multiplicados anos atrás. Cada ano de suas vidas cobrava em cachaça e cigarros e noites mal dormidas os juros e correção monetária, abatidos em suas aparências. Algumas, solidárias a seus companheiros já semiadormecem num estado de embriaguez avançada, que necessitará de ajuda para sua remoção quando der a hora do bar fechar as portas.

No calçadão, os fritadores de salgadinhos, vendedores de batatas-fritas e yakissoba disputam a atenção de um público mais jovem, alguns apenas rodando a vizinhança, outros aparentemente a caminho de alguma noitada em específico. Volta e meia um carro para junto à calçada para fazer um pedido, na versão favela do conceito de drive-thru. O bar e restaurante mais à frente, cuja gerente usa aquele impressionante penteado Roberto Carlos no início dos anos 80, colocou um cantor de churrascaria para fazer uma música ao vivo. As mesas na calçada acomodam uma engraçada e heterogênea mistura de motoristas de ônibus e suas amantes, aposentados moradores das ruas das redondezas e suas senhoras, algumas famílias, e casais de amigas da gerente. No caso dos casais de mulheres, um detalhe não poderia deixar de ser percebido. Em todos os caos, pelo menos uma das duas à mesa (a exemplo da própria gerente do estabelecimento também) representa todo um estereótipo não só de mulher masculinizada, mas de feiura extrema, de mau gosto estético e de atitude machista. A postura, o comportamento e a atitude territorial para com suas namoradas se exibem ali como um conjunto grotesco, que até mesmo entre os homens já se tornou pouco mais que uma lembrança de um século que passou. Mas ali, naquele ambiente, as “maridas” continuam mantendo a tradição do machismo viva, tão dignas de estranhamento como se víssemos estegossauros andando entre os elefantes de hoje nas savanas da áfrica.

À frente, o homem da banca de legumes que jamais sorri recolhe seu material. Continua sem jamais sorrir, conversa com muitas pessoas, mas não esboça uma única sombra de sorriso. Seja de noite ou de dia. No meu mais profundo íntimo, temo que o motivo da incapacidade de esboçar o tal sorriso seja por passar muitos anos nessa vizinhança. Secretamente temo que o tempo em que passo por aqui já esteja diminuindo meus sorrisos também, como se fosse uma praga local.

Entro na minha rua, e a obra inacabada que se converteu em bar exibe um cartaz em papelão: “hoje 19:00 – Pagode”.

O som alto e mal regulado, Mesas no interior do bar-obra, e algumas na calçada oposta, deixando a rua para os carros passarem. Rapazes cantando uma música que conheço, de um artista que consigo identificar mesmo não sendo nem de longe um conhecedor do gênero.Mas a cantoria é tão pobre, a qualidade dos instrumentistas tão rasteira, que mesmo as periguetes que sempre aparecem com seus vestidinhos característicos em qualquer lugar onde estejam escritas as palavras “funk” ou “pagode”, parecem um tanto desanimadas. Sabendo do caráter inflamável que anima e alimenta os rabos periguéticos, considerei esse um sinal inconfundível da baixa qualidade daquele pagode. Uma das moças, uma morena de corpo bem torneado, cabelos mal alisados e uma cicatriz perceptível além de um simples charme numa das bochechas, tentava sambar ao ritmo da música. Seu rosto denunciava aquele olhar de quem procura o próximo lugar para ir, porque onde está já deu. Talvez esperasse uma carona, uma amiga ou já tivesse combinado uma escapada dali. Passei o mais rápido que pude, para escapar do cansaço, da desafinação e dos vapores solitários e pouco amistosos daquela sexta-feira.

Ao virar a curva da rua, a poucos metros da entrada da minha vila, meu maior motivo de alegria foi descobrir que a configuração geográfica da vizinhança impedia o som daquele pagode miserável de chegar até a vila. No fim daquele dia, senti certo alívio ao chegar em casa e poder desfrutar em primeiro plano do som do matagal que fica no terreno atrás da vila, e apenas dos sons normais vindos das casas da vizinhança. Em algum lugar na vila, alguém se arrumava para sair, ouvindo uma seleção de suaves hits internacionais dos anos 80, e naquele momento eu agradeci silenciosamente aos vizinhos sem mesmo saber quem eram. E tive uma boa noite de descanso.