No centro da emoção, revivenciei  situações ainda vivas e ativas dentro de mim, e em memórias lúcidas, me senti completamente mexida... quase transtornada. Lágrimas, rios delas, transbordavam.
E numa conversa silenciosa, coisas que eu não tinha conseguido ainda equacionar, na caminhada pela vida, vieram à tona também de forma clara, simples e serena.
O que faz aí deitado, em sono eterno, senhor todo poderoso? Não me disse que nunca ia morrer?
Sabe, sempre acreditei que, quando acontecesse, não ia doer tanto assim. Talvez eu derramasse algumas poucas lagrimas. Me pegou de surpresa, hein? O senhor e sua inteligência brilhante... 
Dez a zero!
Chamava-me de baronesa, lembra? Nunca me disse a razão. Acho que porque nunca abaixei a cabeça para os seus mandos e desmandos, como meus irmãos, igual a muitos que o temiam e o respeitavam.
Sempre com respeito, tenho consciência disso. Ainda que o contestasse, tinha o cuidado de dar-lhe a impressão de estar no comando. Isso o acalmava, e eu conseguia o que queria.
Lembro-me bem. Eu tinha uns 3 anos. Quando saia para trabalhar eu corria ao seu encalço, chorando: “não vá, papá, abla a porta, abla”
Por que não me pegava no colo, sorrindo, sequer olhava para traz?
Durante toda a minha vida, nunca me deu um abraço, que dirá um beijo carinhoso. Por quê? Eu teria amado.
Cresci achando que não se importava muito comigo.
Por outro lado... me deu tudo o que quis. Estudei nos melhores colégios... tempos felizes...
Embora fosse quase analfabeto, me deu o conhecimento nos estudos e na faculdade da vida.
Valeu, senhor todo poderoso!
Sorrio mesmo sem querer.
Sabe, quanto mais me proibia, mais eu sentia necessidade de desafia-lo.
Nem sonha os perdidos que lhe dei. As vezes em que pulei a janela do meu quarto e fugi para dançar, das artimanhas de que fui capaz para usar micro saias, dos namoricos que tive...
Calma! Nunca fiz nada que o envergonhasse ou ferisse a sua honra.  Era uma garota ajuizada, o senhor me ensinou, lembra?
Houve tempo em que quis jogar tudo para o alto e sumir no mundo. Também, quem mandou me prender? Eu só queria ser livre. Voar, simplesmente.
Hoje eu o entendo. Só queria o melhor pra mim, me proteger desse mundo cão, como dizia..
Sabe, hoje, inda  não desisti de voar não... Porque é tão difícil?
O Senhor sabe a resposta? 

E eu cresci. E... o senhor se foi. Agora... está tombado ai, inerte... Por que me fez acreditar que era eterno?
Sim, amo Você, pai, agora e sempre. Sei que, à sua maneira rude, me amou muito.
Perdoo a mim mesma. E o perdoo por tudo.
E, de repente, algo mágico, inesperado... Ternamente, me entreguei em seu abraço e ele no meu...
O funcionário apareceu. Nosso tempo se esgotara. Em paz, lancei-lhe um ultimo olhar.
Vou sentir sua falta, pai, até mesmo dos seus mandos e desmandos, acredita nisso?
Um dia... a gente se por ai!



 
Marisa Costa
Enviado por Marisa Costa em 29/11/2012
Reeditado em 07/08/2021
Código do texto: T4010740
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