COTIDIANO

São, mais ou menos, seis e quinze da manhã e o homem, aparentando uns 40 anos, encosta o cotovelo no balcão seboso daquela padaria e dispara “um-café-cum-leite-e-dois-pão-cumanteiga” assim, à queima-roupa, assassinando Manuéis, Joaquins e qualquer outro Português que passasse em sua frente. Pega um copo maior e completa um quarto de seu volume em açúcar, já que é “de graça”, como diz o copa, e despeja aquela mistura marrom, agora saturada de uma sacarose que lhe dará uma energia extra para enfrentar um dia de trabalho.

Por falar em trabalho, ele lembra que daqui a pouco entrará pelos portões da fábrica, acinzentados pela fuligem que regurgita de suas chaminés e pensa na rotina que lhe aguarda... Primeiramente, vestir o uniforme amarrotado, que dormiu de ontem pra hoje no mesmo armário de sempre. Ajeitar as botas, usando meias em petição de miséria e se preparar para uma jornada de oito-horas-mais-uma-de-repouso-e-alimentação, como se diz no jargão sindicalista. Lembra que ali estará protegido pelo guarda-chuva do corporativismo que tanto lhe garantiu em termos de direitos e benefícios, convênio médico, bolsa de estudos e outros eteceteras que funcionam como “salário-indireto”, mais um dos tantos jargões dos comunistas do sindicato. Aliás, pra que serve mesmo um sindicato, senão tomar aquela contribuição compulsória, a fórceps, de nossos salários? Bom, essa pergunta fica revoando em seu crânio, como varejeiras enormes, iguais às que revoam o lixo daquela padaria, e por enquanto, não temos resposta.

Começa a recitar em sua mente os passos que tomará naquela manhã, ferramenta por ferramenta, driblando o inesperado e domando a rotina como se doma um leopardo albino, animal que ele sempre desejou ver, mesmo não tendo muita certeza se existe ou não. A manhã de cálcio enverga para um amarelo pleno de meio-dia, gema de ovo suspensa no ar, anunciando a hora do seu almoço. Que comerá naquele dia? Independente do cardápio, não pode reclamar, a comida é sempre farta e de ótima qualidade e ele enche seu bandejão com um sorriso de satisfação e remorso. Desejava apenas que estivesse ali sua família para poder gozar daquele benefício nutricional, daquelas mil e tantas calorias que eles só viam em festas de casamento dos amigos ou churrascadas da empresa nos finais de ano. Porém, engole seu remorso com a ajuda de um refrigerante gelado e pensa em uma forma de compensar a quem ficou em casa, para a remissão de um pecado velado, como um Jó pós-moderno. Talvez com um pão-doce comprado na volta pra casa, ali mesmo, naquela padaria imunda, porém, a única que aceitava, vem em quando, seus fiados.

Chega a tarde e o seu metabolismo desacelera para que a digestão daquela bandeja seja completa e não lhe traga prejuízos gastro-intestinais, mesmo porque ele já não pode comer tudo o que deseja, todos os torresmos de beira de estrada, as coxinhas dos botecos mais insalubres e aqueles ovos coloridos que fascinavam-no em sua infância pobre e restrita de guloseimas. Parte para sua rotina vespertina...Verifica daqui, observa dali, olha, observa de novo, mantém a máquina do progresso azeitada e pronta para encarar mais uma década sem substituições importantes, apenas manutenção preventiva e que ele sabia fazer tão bem, motivo de honras por parte de seus superiores, para falar a verdade, qualquer outro trabalhador daquela fábrica, visto que era o que possuía o cargo inferior daquela hierarquia moldada a ferro e a fogo, decapitando os insurgentes e premiando com migalhas de mérito os obedientes. A tarde passa como uma flecha de prata e aterrissa num cartão de ponto batido exatamente às dezessete horas. A volta pra casa é o repouso do guerreiro...ônibus lotado, cheiro de desodorante barato e suor impregnam a atmosfera e entorpece o motorista que desconhece as curvas daquele trajeto perigoso e faz do retorno para casa uma reta em direção ao infinito. A noite nada mais é que um véu que desce sobre seu corpo cansado, e o embalsama para outro dia, tudo de novo...

Mas, percebe que seu café esfria naquele balcão, agora menos sujo, e com cheiro de álcool de limpeza, daqueles com perfume de eucalipto. Olha para o pão e chama a atenção do copa que passou manteiga em apenas uma das bandas. Reclama. Onde estão os direitos do cidadão comum? Ele aproveita sua revolta constitucional para xingar o jornaleiro que, ainda, deve estar dormindo sossegado: “Já são seis e meia e esse desgraçado ainda não abriu a banca! Logo hoje que é dia bom de Classificados! Como vou conseguir um emprego desse jeito?”. sorve aquela mistura tépida de açúcar, café e leite, espanta as varejeiras, mastiga seu último pedaço de pão e olha para o infinito, tentando recomeçar sua jornada de trabalho. Mesmo que seja só no seu pensamento, único lugar que lhe guarda alguma dignidade nesta vida.

Marcelo Lopes
Enviado por Marcelo Lopes em 17/12/2012
Código do texto: T4039773
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