Paraná 92

Meu domingo sonolento se encanta do Paraná

& das coisas que em suas terras acontecem

& e do que deixei aqui há quinze anos atrás.

Curitiba onde as pessoas deixavam o carro em casa e iam ao centro de ônibus, porque era mais rápido e barato. Podia-se atravessar a Rua das Flores a pé, na madrugada, com segurança. Depois do fervo, o verde do Passaúna, mirante dos nascentes. De manhã o Museu de Arte Sacra, no Largo da Ordem, onde repousa o velho altar da primeira Matriz. Trajes antigos do clero, pirogues e todas as comidas imagináveis (da pamonha aos tacos, veggies nos restaurantes do casario, sanduíches e sopas e japas), clowns e artistas plásticos, poetas debaixo da poesia de Leminski, louça, prataria, antiguidades em geral; hippies e moderninhos, senhoras, senhores, crianças e a moçarada cantando chorinho com os avós, tudo em uma só manhã. À tarde um lanchinho na choperia ou nos cafés que se espremem no fundo das galerias e seus cinemas, no Centro velho, pedestre, civilizado, onde se passeia com tranqüilidade. Volta a noite e os lugares enfumaçados de gelo seco e cigarro, dançar escondido do fog e do frio onde habitava uma alma cinzenta pronta para te tragar para dentro de si mesma e te fazer esquecer do sol. Mesmo porque o dito cujo não aparece, languidamente ensimesmado atrás das nuvens.

Conhaque flambado, blue curaçao-vodca, martini, tônica e limão no OVNI, whiskey com suco de laranja e licor de amêndoas na Hell.

Havia em Curitiba, naquela época, tal profusão de artistas que era óbvio que se estabeleceria uma comunhão bastante ampla com o público. Teatro participativo, escolas de circo, recitais, palestras e aulas práticas de música, cinemas de arte e salas de espetáculo em profusão. Bares de jazz, de blues, de reggae, cordialidade entre as tribos, lugares GLS antes mesmo da sigla ter sido inventada. E as meninas junto, sem caô, jogando pebolim no Circus Bar. Freqüentavam-se lojinhas da moda, passeava-se no centro e encontrava-se as mesmas pessoas depois, no restaurante ou na boate. Convivendo nos mesmos lugares, acabávamos por conhecer “todo mundo”.

Duas histórias do Poe me arrepiaram os cabelos. A primeira para pouco mais ou menos de vinte pessoas, num castelinho que viria a ser demolido. Jantamos com os atores, entre fartas doses de vinho, seguimos os desenrolar dos acontecimentos até a Biblioteca, aos quartos estranhos e corredores escuros da loucura. A segunda, “A Máscara da Morte Rubra” no sótão do Teatro da Fábrica, uma noite de delírios narrativos, sete colunas para sete salões.

Os cines Luz, Ritz e Groff ensinando cinema de graça prá gente. A Tabalipa no Museu Alfredo Andersen. O show do Hermeto no Paiol terminando com o bumbo na praça. A Cássia Eller no AeroAnta. O X-Picanha no Waldo.

Subir a Serra para Ponta Grossa, descê-la para Paranaguá. Pela estrada nova é rápido e seguro, pela Graciosa o nome diz. Morretes o pedacinho de trópico do pequeno litoral de apenas cento e oitenta quilômetros, fincada no cheiro do barreado, da pinga de banana, peixe e farinha. Antonina e Guaraqueçaba sempre nas paredes da casa, pelo pincel de Jacobus van Wilpe ou Kurt Boiger. No segundo planalto, vales, rios, capões de mato entre as colinas, onde corre a água em seus veios, demarcando os lotes, os municípios e os corações. “Sempre a água”, dizia meu avô, “mãe da vida.” As cachoeiras dos Campos Geraes, que Saint-Hilaire considerava o repouso do mundo. O drama da Fazenda Fortaleza, onde o bisavô de meu amigo viu a esposa servir os dentes imaculados e elogiados da escrava que o marido ousara elogiar e, ato contínuo, acorrentou-a no porão. Os grossos volumes da “História” do Professor Davi Carneiro expostos na Biblioteca Bruno e Maria Eney.

Um pouco antes de ir embora, o adeus dos amigos escamoteia o sono e o coração aperta. Sei que voltarei outro, só não sei quando. Sei que sentirei falta, só não sei quanto. Acordo e estou novamente aqui, não sei como, nem sei porquê. Da janela vejo um pinheiro que me conforta, no vizinho um eucalipto, na viagem passo por Carambeí. Acordo com os sabiás e aguardo o frio com ansiedade, que é para poder pensar melhor.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 16/03/2007
Código do texto: T415190