O Sopro

"Eu lembro como se fosse ontem.

Era noite na cidade do sono, e enquanto todos bocejavam, meus amigos faziam um luau no Largo da Fábrica. Saí de casa com a gaita no bolso, não que eu seja um verdadeiro blueseiro, ainda não cheguei nesse nível, sou apenas um soprador, e no final das contas, quando já estão todos loucos, ninguém liga se você tá viajando, o que importa é o som, a sintonia...tudo fica bom.

No caminho passei pela venda, descolei umas duas garrafas de um vinho barato pra tornar as coisas mais fáceis. Não estava nada fácil, eu ainda carregava aquele vazio dentro de mim, e cada passo ecoava nele, mas ninguém ouvia. O largo fica do outro lado da cidade, leva exatamente três cigarros até chegar lá, em circunstâncias normais. Eu já estava no quarto cigarro, à três quartos do caminho, caminhava razoavelmente devagar para os meus padrões. São Paulo me deixou sequelas, quase sempre eu ando correndo. Isso irrita as pessoas aqui. Em silêncio fui compondo versos na cabeça, entre um trago e outro, qualquer hora eu escrevo, caso eu lembre, eu sempre faço isso. Nunca para.

Entre um pensamento e outro, acabei descobrindo o porque de escrever. Porque é mais fácil do que falar. Eu sempre fui um bom ouvinte, mas nunca gostei de falar muito de mim, mesmo com os mais próximos. Deve ser pela sensação de que, no fundo no fundo, ninguém de fato se importa. Mesmo quem te ama, eles querem te ver bem, mas simplesmente não podem fazer nada por você. É inútil. Não muda nada, então eu guardo pra mim, e depois deixo respingar no papel. Melhor assim, não desperdiçamos o tempo e os ouvidos de ninguém com coisas sem sentido.

Eu chego no Largo, a galera em peso, o som já está rolando. Dou um "Eaê" coletivo e me sento junto à eles. A Fabi está cuidando do chapate que vamos compartilhar mais tarde, enquanto o Lu, a Ravena e o Ted riem de alguma maluquice, um pouco mais de canto.

Jimbo parece inspirado na viola e o Tchelo tira sons e vibrações indianas na flauta. Eu fico em silêncio, só observando, absorvendo, não sinto a menor vontade de puxar a gaita. Abro uma garrafa e fico ali, sentindo, entre um trago e outro.

Não passa muito tempo, ela aparece. Eu lembro como se fosse hoje. Os passos ritmados, bem mais lentos que o meu coração, o vestido florido e os cabelos soltos, as minhas mãos suam um pouco, eu dou um trago longo no vinho, passo ele pra alguém.

Rápidos cumprimentos à todos, ela está apenas de passagem, alguma coisa dentro do meu vazio vibra. Ela mal fala comigo, está atrasada pra uma festa. Dá um tchau coletivo e sai. Um peso úmido embaça e distorce minha vista enquanto eu observo suas costas, mas eu seguro, se elas caíssem talvez eu voasse, mesmo assim eu seguro.

Jimbo pega no ar o cheiro salgado/amargo da minha aura e puxa um blues digno do Mississipi, eu pego a gaita e sopro o lamento supremo do Mundo, uma pequena frase apenas, contendo tudo que não mais poderia ser dito, e antes de desaparecer ela para e olha pra trás na minha direção, por não mais que dois segundos, antes de desaparecer, só para mostrar que ela sabe.

É, ela sabe."