Por que escrevo isso?
 
Não reconheço mais todos os passos que dei para chegar a ser quem sou, mas alguns fatos, embora na aparência insignificantes, foram tão marcantes que, pensando neles reconheço coisas que aparentemente foram inerentes à minha vida, já que nem lembro quem foi que me ensinou.

Estudei em uma escola de roça multisseriada. A escola tinha até o terceiro ano primário. Para que eu entrasse no ginásio era preciso o diploma de quarto ano primário. Assim é que em determinado mês de outubro meu pai me levou para o internato em Andrelândia. De lá fui para São João Del Rei, também no internato. E quando se percebeu que seria impossível manter todos os filhos no internato, meu pai mudou-se para Lavras. Já éramos oito filhos na ocasião, nasceram mais dois.

Minha pequena cidade, Arantina, ainda hoje tem menos de três mil habitantes. Lavras, na minha cabeça, era uma cidade enorme de uma rua só, que começava na Estação Ferroviária e acabava mo Quartel da Polícia Militar, que ficava no fim do Mundo. A Rua Direita que se desdobrava em várias denominações. Morávamos na Rua Santana, a mais chique da cidade, onde o bonde passava, subindo e descendo. A minha escola ficava em uma rua secundária, paralela a nossa Rua. Quando a sirene tocava dando o primeiro sinal é que eu ia escovar os dentes e pegar o meu material escolar, porque sabia que daria tempo para chegar na hora. Era uma Escola só para Mulheres, mantida por freiras, como as duas em que eu estudara antes. Nesse período duas coisas aconteceram que hoje, pensando nelas, vejo que ali no primeiro ano do que seria o ensino médio, eu já mostrava quem eu era e que se solidificaria para sempre. Todos os dois fatos aconteceram logo no início do primeiro ano, ouso dizer que o primeiro, na primeira aula de português.

Lá estava a aula correndo com a classe em silêncio sepulcral. Era uma aula que eu estava gostando muito e prestava muito atenção. Na sala, a freira elegante e soturna em seu hábito de esposa de Cristo, escrevia no quadro o nome de obras e seus autores. Quando de repente a roceirinha lá na frente levanta a mão e diz: esse livro aí não foi escrito por esse autor. Como assim? Um zunzunzum começou a circular e a freira continua: claro que foi, menina, quer saber mais do que eu?  A roceirinha que era eu então responde:Quero não, mas quem escreveu foi fulano. Juro, eu daria tudo para lembrar que livro era esse e quem o escreveu. Mas só me lembro de na hora do recreio todos estarem comentando o assunto. E uma daquelas meninas com quem eu iniciava uma amizade por toda a vida, me perguntou:Como você teve coragem de questionar a Irmã Regina? Até hoje sinto o espanto que senti por compreender que as colegas tinham medo da professora, coisa que eu nunca senti: medo de dizer o que penso, quando penso que estou certa.

Tempos depois lá estava eu, orgulhosa por ser filha do dono da melhor padaria da cidade, do lado de dentro do balcão, olhando placidamente o movimento da rua. Uma de minhas novas colegas passou. Talvez a mais bonita delas. Olhou-me de soslaio e mal me cumprimentou, antes acelerou o passo. No outro dia, em um dos intervalos das aulas, ela se aproximou de mim e perguntou-me: Você não tem vergonha de ficar do lado de dentro do balcão como uma empregadinha qualquer? Acho que levei tanto susto que nem respondi.

O tempo passou, eu formei-me, fui ser professora, meu pai morreu e com meus irmãos, herdei a Padaria. Naquela semana minha foto e meu nome saíram no jornal – Eu seria a nova Secretária Municipal de Educação e Cultura. Passando pela Padaria em meu primeiro dia como Secretária, entrei para ver se tudo estava certo. Vi o balcão apinhado de fregueses, os funcionários atarefados e a pia cheia de copos sujos. Nem pensei, fiz o que sempre fazia – fui lavar os copos. Foi aí que um dos fregueses dirigiu-se a mim dogmático: Ei, agora você não pode mais fazer isso. Fazer o que, perguntei. Lavar copos. Face ao meu olhar inquiridor ele continuou – Você agora é uma autoridade, Secretária de Educação, pega mal você ficar atrás do balcão lavando copos.

Por que escrevo sobre isso? Porque hoje é o Dia Internacional da Mulher e gosto de pensar que me transformei em uma mulher que absolutamente nunca me preocupei com o que os outros pensavam sobre mim.