Perto do coração

Perto do coração

Belvedere Bruno

Lendo Clarice Lispector, sentada em sua cadeira de balanço, Beatriz Bernardi interrompe a leitura a todo instante, refletindo sobre como a ausência de um ser amado pode modificar uma família. Desde que Ana Lúcia se fora, a Mansão dos Bernardi perdera a magia que por décadas a todos encantara. Vários membros passaram a agir como fantoches, manipulados pelo desejo de fazer crer que nada havia mudado. O que se observava era encenação, um verdadeiro faz de conta. Até o quintal, antes amplamente arborizado, parecia um deserto, tamanha a aridez. Os animais de estimação, parecendo acuados, não mais faziam a costumeira festa . Que vazio naquele ponto luminoso! Como era triste ir àquela casa sabendo não mais ouvir os risos de Ana Lúcia. Do passado, risonho e feliz, havia apenas fragmentos, como num jogo de quebra-cabeça onde faltam peças para o encaixe.

Beatriz, amargurada, decide assumir sua deserção. Nunca mais voltaria a participar daquelas fictícias reuniões da familia.

Sente difículdade em prosseguir na leitura. O caso Ana Lúcia Bernardi tomava proporções maiores que a sua obsessão literária. Sempre achara Clarice um gênio, embora não entendesse muito bem sua obra. Já havia lido diversos livros e, ao final, restava sempre uma interrogação. Sorrindo, fazia uma analogia entre si e os Bernardi: a persistência.

Subitamente, sente um aperto no peito. Chega a pensar no quanto seria romântico morrer ali, com um livro de Clarice nas mãos. Nesse instante toca o telefone. É Miriam Bernardi convidando para uma noite de queijos e vinhos, sábado, na Mansão. Beatriz recusa, explicando a opção por manter vivas as verdadeiras lembranças . Diz que discorda dos excessos da família , pois há muito devaneio para seu gosto. Prefere se afastar. Miriam desliga, abruptamente. Beatriz sente alívio.

Reiniciando a leitura de Perto do coração selvagem, sente que agora, com sua percepção mais aguçada, absorverá toda a riqueza da incensada atmosfera clariciana.