NO FUNDO DO ESPELHO.




Debrucei-me no espelho. O susto é natural quando nos defrontamos com nossa imagem. Interessante, achava que tinha outro semblante. Aquele de anos atrás no qual depositava minhas esperanças e ilusões de que a aparência me daria algum ganho na convivência dos meus cúmplices de contemporaneidade. Mas não era preciso tanta diferença! Meus olhos eram azuis! Ou não? Meu cabelo era loiro e liso, minhas bochechas seriam rosadas, meus dentes; ah meus dentes, estes eram um teclado de piano, sem as teclas pretas certamente. Mas o que vejo agora serve certamente de inspiração para os desenhistas infantis, os quais inundam as televisões com estes monstros que as crianças adoram. Ao menos a idade e o desleixo pode me tornar simpático a elas, assim como os monstros. Meus cabelos se tornaram de cor indefinida, rebeldes, ora brancos ora esverdeados. Os dentes, os que restaram, estão amarelos e sanguinolentos. A pele tomada de sulcos e manchas despenca da testa ao queixo deformando a boca, o nariz, as bochechas, formando papadas que se seguram na gordura do pescoço. Os olhos se distinguem, guardam nos cantos um resquício de lágrimas que teimam em se perpetuar desde a muito, quase que durante toda a vida. A emoção de ver e viver a vida é que os manteve úmidos. Talvez o fato de olhar somente ao redor me tenha induzido ao hábito de não olhar para mim mesmo, para o espelho.
Em segundo plano, além da minha imagem, reflete-se não sei de onde, talvez da minha memória um grande jardim com crianças correndo e se agarrando, felizes, às gargalhadas.Abaixo no espelho, como se fosse em um peitoril mãos se agarram tentando se erguer para vislumbrar o lado de cá. Eu como num ato reflexo solto os dedos ansiosos pendurados ao parapeito para que estes seres não consigam se apresentar novamente em minha vida. Não me interessa revê-los. Certamente serão minhas recordações, as boas e as más, que mais uma vez tentam assombrar a minha existência. Não me interessa mais o passado. Vive-lo já foi o bastante. A cada mão que derrubo uma das crianças some da paisagem. Assim sofregamente me desfaço de todas as mãos angustiadas que tentam voltar e quando por fim consigo vence-las, ao mesmo tempo, todas as crianças desaparecem do segundo plano. 
O espelho se transforma em um vidro comum, sem imagem que não seja a minha própria, como qualquer espelho, como qualquer imagem que se reflete nestes painéis que adornam as vitrines da cidade. Minha imagem, embora desgastada pelo tempo e pelo que fiz dela continua por aqui, percorrendo o cotidiano. Algumas vezes percebo nas ruas, nas vidraças espelhadas crianças saltitando a minha volta, alegres e brincalhonas me acompanhando na caminhada.
Humberto Bley Menezes
Enviado por Humberto Bley Menezes em 31/03/2007
Reeditado em 17/08/2008
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