Causos do Coletivo - O relato de um torcedor

Cada dia mais, no decorrer dessa minha vida de trabalhador assalariado, percebo que utilizar o transporte público de São Paulo pode ser um ótimo exercício sociológico. Além de ter mostras diárias das condições sub-humanas a que estão submetidos diariamente milhares de trabalhadores, essa viagens, por vezes muito longas e demoradas, em que algumas linhas podem levar mais de duas horas para completar seu trajeto, do ponto de partida ao ponto de destino, nos oferecem ricos relatos das mais variadas situações do cotidiano de quem vive nessa que é uma das mais populosas cidades do mundo. Em termos demográficos, dizem que fica atrás apenas de Tóquio e da Cidade do México. Não é difícil acreditar nisso, principalmente quando eu preciso esperar dois ou três ônibus passarem lotados até que venha um no qual eu possa, finalmente, entrar. Não são raros os dias em que sigo pendurado na porta por alguns bons quilômetros durante minhas viagens matinais. Por tudo isso, acrescento que, além de ser um ótimo exercício sociológico, essas viagens são como certos rituais religiosos através dos quais seus seguidores ratificam o sentimento de humildade, que julgam necessários à vida em sociedade. Creio até que (por algum motivo que não consigo explicar), se os detentores do capital passassem por essa situação ao menos uma vez por semana, talvez a colossal desigualdade social de nossos dias sofresse um significativo refluxo!

Não são raras as situações em que, após a rodada de final de semana de algum campeonato de futebol, esse esporte seja o assunto das conversas de alguns passageiros, torcedores assíduos dos times da capital. Foi na manhã seguinte a um “clássico” do futebol paulista, jogo entre duas tradicionais equipes cercado de rivalidades, que testemunhei um relato referente ao aspecto mais violento da natureza humana. No interior do veículo que, devido ao forte calor tinha se transformado em uma enorme fornalha, um rapaz contava ao amigo um episódio envolvendo sua participação indireta numa já rotineira briga entre torcidas.

O ônibus seguia seu melancólico trajeto diário. Espremidos uns contra os outros, alguns passageiros que conseguiam sentar, dormiam. Lembro de um sujeito que batia constantemente a cabeça contra o vidro da janela lambuzando-o com gel de cabelo e, mesmo assim, não acordava. Outros combatiam o calor utilizando as mãos ou qualquer outra coisa que servisse de abano; outros ainda, tentando desvencilhar-se dos demais passageiros lutavam para se aproximarem da porta de saída. Foi em meio a todas aquelas pessoas que o rapaz, identificado aqui como Fulano (já que não tive como saber seu verdadeiro nome), passou a falar de sua atuação como coadjuvante de um crime que começou antes mesmo do apito inicial do árbitro da partida, e no mesmo dia ocuparia posição de destaque na mídia noticiosa.

O irmão de Fulano tinha uma Kombi, automóvel com capacidade para carregar um pequeno grupo de pessoas, mais ou menos quatorze ou quinze, que utilizava para realizar carretos. Era desse automóvel que provinha o sustento da família. Nos dias de jogos de seu time, Fulano disse que costumava pedir a Kombi emprestada para levar os companheiros da torcida organizada, da qual faziam parte há muito tempo – fato que comprovavam com orgulho mostrando o número relativamente baixo de suas carteirinhas de sócios – para o estádio. Porém, naquele domingo as coisas não correram exatamente da forma como costumava acontecer. Haveria um crime.

O interlocutor de Fulano nem piscava os olhos, atento à seqüência de fatos narrados, parecendo esquecer o calor e o aperto ao qual estava submetido enquanto seguia viagem. Fulano lhe falava sobre uma importante tarefa que realizou antes de seguir rumo ao estádio: transportar alguns companheiros ao palco de uma batalha. Assim, saiu mais cedo de casa, pegou alguns rapazes e foi para um local pré-estabelecido entre as duas partes envolvidas no conflito. Através da internet, integrantes das duas torcidas rivais, à exemplo das histórias de faroeste, marcaram o duelo fatal, caracterizando essa espécie de prazer que esses jovens experimentam através da violência contra grupos “inimigos”. A esse respeito, li há alguns dias um estudo em que o autor apontava “o esvaziamento da noção do coletivo na formação dos jovens(*)” para explicar tal comportamento. É significativo o fato de esses jovens demonstrarem tanto apego pelas torcidas organizadas, o que indica claramente a necessidade que apresentam de incorporarem uma identidade, assim como a de fazer parte de um grupo.

O trânsito parecia não andar e, de dentro do ônibus, eu podia ver uma longa fila de carros parados no habitual engarrafamento da cidade, todos ocupados por motoristas que mais pareciam robôs treinados em acelerar e frear, acelerar e frear... Não mudavam sua expressão blasé nem mesmo quando conseguiam passar a segunda marcha, quase todos solitários dentro de suas jaulas sobre rodas. Quando voltei a atenção ao diálogo, Fulano prosseguia seu testemunho. Segundo ele, tão logo desembarcou seus companheiros armados com pedaços de pau – utilizados mais tarde como cassetetes – acelerou o veículo tendo como destino a casa de outros dois companheiros, dessa vez no intuito de finalmente irem ao jogo de bola. Sicrano e Beltrano, amigos de Fulano, cujos verdadeiros nomes também não consigo recordar nesse momento, já estavam a sua espera. No caminho os dois foram postos a par dos últimos acontecimentos. Tiveram tempo de comprar seus ingressos sem ter que passar pelas mãos de cambistas e, ainda, comer um lanche de pernil antes de adentrarem o estádio. Definitivamente, o clima estava meio estranho entre os três amigos, como se todos já pressentissem o mal, avaliou o narrador participante.

Nesse momento o motorista do ônibus freou bruscamente, obrigando Fulano a parar de falar para se segurar. Uma mulher postada logo atrás dele não teve a mesma sorte e acertou o balaustre com as costas, após ter se chocado contra outro passageiro. Os lamentos da pobre senhora foram abafados pelas gargalhadas de dois jovens que estavam na parte traseira do coletivo e acharam a situação muito engraçada. Um pouco mais adiante, um homem berrava alguns palavrões referindo-se a digníssima mãe do motorista. Logo que a situação no coletivo voltou ao normal, Fulano retomou sua narrativa. Segundo ele, naquela tarde o jogo não estava no centro de suas atenções e nem nas de seus amigos; não conseguiam se concentrar nas jogadas dos craques que davam o melhor de si no gramado. Tampouco importava o placar da partida. A provável cumplicidade num crime provocava sensações de angústia e uma dor no estômago que, segundo Fulano, não o deixava em paz e contagiava os outros dois que voltariam junto para casa após o jogo.

Seu semblante pareceu mudar quando disse que em determinado momento, depois de transcorrido mais do que a metade do segundo tempo o telefone de Sicrano tocou. Era a namorada preocupada, querendo saber se estava tudo bem com eles, pois há pouco vira na televisão notícia de uma grande confusão antes do jogo. A reportagem a que a garota no telefone se referia informava o desfecho da batalha agendada via web. Um daqueles que Fulano dera carona havia disparado um tiro em direção aos adversários acertando em cheio o peito de um jovem que não resistiu e morreu ali mesmo, no campo de batalha improvisado, causando indignação e perplexidade em quem não compartilha dos mesmos símbolos conferidos pela estética, pela camisa, pela coesão e pelo poder que esses grupos dispõem aos seus integrantes – poder que de outra maneira eles dificilmente desfrutariam, devido à configuração social que, evidentemente, os desfavorece.

O que aconteceu depois, se a arma pertencia mesmo a um de seus companheiros, se alguém foi preso ou pagou de alguma outra forma por conta de tal episódio, não sei dizer. Fulano e seu amigo desceram do ônibus e seguiram sei lá pra onde pra fazer sei lá o que. De minha parte, segui meu caminho pensando no absurdo do real e na falta de perspectiva que leva uma pessoa a deixar-se envolver por grupos dessa natureza, desprovidos de qualquer ideal contestador, lutando em nome de times de futebol que deveriam oferecer, no máximo, belos espetáculos de contornos circenses em tardes de domingos ensolarados, para serem vistos em companhia de amigos. Se em outros tempos a massa se concentrava para assistir aos duelos de gladiadores na arena, infelizmente hoje é a própria massa que se destroça em meio à miséria a qual vemos se resumir o espírito humano. Qualquer final de campeonato parece menos banal.

__________

Referência:

(*) PIMENTA, CARLOS ALBERTO MÁXIMO. “Violência entre torcidas organizadas de futebol”. São Paulo Perspec., São Paulo, v. 14, n. 2, 2000.

Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392000000200015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 22 Mar 2007. Pré-publicação. doi: 10.1590/S0102-88392000000200015

Leonardo André
Enviado por Leonardo André em 03/04/2007
Reeditado em 03/04/2007
Código do texto: T435829