Cronica de rodoviária: Irrelevante?

CRÔNICA DE RODOVIÁRIA: IRRELEVANTE?

Finalmente, iriam se encontrar aqueles conjuntos de amores guardados, doloridos e magoados há tantos anos em histórias que se resumiam em palavras que mal cabiam nas bocas: angústia e frustração iriam se aproximar...

Arrumou-se como uma mulher apaixonada _ com as roupas de que ele mais gostava, vestido de ‘pois’ ( bolinhas), saia rodada, sapato fechado de salto alto. E rumou para a rodoviária.

“Novo Rio”, nome irônico para um lugar tão antigo, mal engendrado e maltratado, mas havia a promessa de se tornar um nome válido, agora que passava por completa reforma. Sim, porque chegar aos terminais da Novo Rio nesses dias é uma peripécia entre obras. Viadutos são demolidos por um lado, outros são erguidos, duzentos metros apenas de distancia um do outro, e a rodoviária espremida no meio, em mesóclise de gente, fervendo, em ebulição de poeira. Destinos, pode-se dizer, literalmente, esvoaçando pelos ares.

Embora fosse toda feita de medo e timidez, Clara não se intimidara. De seus medos, na poeira via purpurina, tons e brilhos que só a ela cabiam. Da timidez, sentia a cremosidade umedecida e adocicada dos lábios sob o efeito do batom amorangado. Toda aquela obra não era diferente da reforma em si mesma. Olhava a confusão estúpida do trânsito ao redor e pensava em framboesas: “também eu já não soube para onde ir; não soube por onde portar minhas malas pesadas”. E seguia seu caminhar, leve, entre os tapumes, bate-estacas, lixamento de asfalto...leve porque todos esses desconfortos também esvoaçavam para fora de sua alma.

Bem, rodoviária é aquilo mesmo: pessoas às dezenas ou centenas, umas passando correndo, derrubando as outras, dando trancos com as malas; mulheres de olhares cansados, rostos desolados, três ou quatro crianças agarradas aos seus braços e aquela mesma pergunta no rosto, “meus Deus, cheguei, e, agora, o que é que eu faço?” nenhuma placa de indicação. Seguem o fluxo e vão passando, na linguagem corpórea dos empurrões. Não há muita nitidez nos rostos. Não certa diferenciação entre os que chegam com sorrisos e os que chegam com lágrimas omitidas, porém prevalece a falta de cor, talvez por cansaço, talvez pelo desconforto das varias horas de viagem, talvez pela poeira irrespirável das obras da rodoviária, talvez pelo medo do novo destino ou timidez de recomeço.

Entretanto, Clara estava diferente. Transformação era tudo que a motivava. Nem mesmo do caos local, nem do prefeito que recriava uma nova cidade particular só para ele e suas comitivas ela reclamava mais. Seguia com o salto alto entre tapumes, buracos, britadeiras. Ria quando o pé entortava ia dando palpites aos que passavam: “o ponto de táxi agora foi para atrás das obras, uns trezentos metros em frente; os ônibus municipais ficam no terminal provisório lá longe, sim; tem de atravessar a toda obra, com certeza; não , não há carrinhos nem carregadores de malas”.

Parou junto às grades que separam os que esperam dos que estão chegando. Uma senhora ao lado gritava: ‘ João, João, Joãooo, filho de Deus, não me vê ?’

As rodinhas de uma mala qualquer atravessaram por cima do sapato de Clara. ‘ Ei, moço, o senhor não tá vendo meu pé aqui, não? Isso dói...’ Mas o homem nem olha para trás, nem pede desculpas. Segue-se a ele um grupo de adolescentes, uns trinta travesseiros dependurados embaixo dos braços. Passam rindo de montão. Esses ainda estão imunes. E a operadora da rede de táxi perpetua os berros: ‘aqui, táxi, táxi, ei, moço, táxi, compra o ticket aqui’. E a operadora da empresa concorrente berra mais alto ainda ao lado: ‘ Táxi, quem quer táxi, táxi, táxi, compre aqui, oferta’. Oferta nada...mais caro ainda, porque na rodoviária cobra-se o que se quer, no mínimo o dobro ou triplo de uma corrida normal, mais adicional por mala, mais o adicional por ter de contornar as obras...

E Clara nem liga para a berraria. Ouve música imaginária. Trocara angústias por esperanças. Uma hora e meia de espera. Será que ele não veio? Será que o ônibus atrasou?

Três cães famintos, ressequidos e sujos entram no saguão de espera. Motivos para chutes, gritarias, mal tratos. Brutalidade a esmo.

‘A Senhora espera alguém, moça?’ pergunta-lhe obviamente ridículo um dos guardas que passam pelo local. ‘ Não fique tão próxima da passagem’...Ora, pensa Clara, tudo ali é só via de passagem...

O sapato de Clara tem marcas de rodas de mala alheia; o vestido já está meio amarrotado, o rosto coberto pela maquiagem de poeira, ou purpurina de obra, e o cabelo mil,vezes revirado pela expectativa própria e os empurrões dos aflitos. Coberto de timidez e medo, com os lábios roçando e os olhos cintilando, Ubiraci, já bem junto ao ouvido de Clara, avisa:

_ Cheguei!

Oferece-lhe uma caixa de chocolate. Clara ainda tem os lábios cobertos de batom, mas um simples doce de chocolate pode trazer música, pode vir com gestos, com intenções. Ele não via o batom. Ligou o doce sincopado aos lábios carnudos e adocicados.

Clara pegou a caixa ainda meio sem graça, sem saber o que o toque das mãos iria denotar. Via voltas em seu coração, as voltas que a vida dá ao se preparar um bombom com as mãos. Para o amor fora conduzida e, agora, não mais saberia voltar. Ao invés do batom amorangado, antecipava o gosto do chocolate. Chocolate, em alguns casos, serve como remédio, e a boca, também. Chocolates são capazes de fazer milagres na vida da gente... e a boca, também. Sorriram o milagre de um sorriso e se viram, sem poeira, sem purpurina, sem maquiagem.

E assim, essa crônica, que busca acontecimentos cotidianos onde nada relevante acontece, virou poesia, com música, gestos, intenções...uma ligação entre cenas sem relevância e sem segredos.

Irrelevante?

Carmem Teresa Elias e De Magela

Carmem Teresa Elias e De Magela
Enviado por Carmem Teresa Elias em 14/07/2013
Reeditado em 16/07/2013
Código do texto: T4386392
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