Autenticidade é tolice?

Denise estava indo para casa, como fazia todos os dias, pelo mesmo caminho, e no mesmo horário. Só que naquele dia alguma coisa estava diferente. Apesar de estar seguindo a mesma rotina de anos, a sensação que tinha, era nova. Estava triste e chateada com o companheiro (bom, pelo menos ela pensava que fosse). Na verdade, estava decepcionada com uma das pessoas que mais confiava. Temos por hábito nos proteger de pessoas estranhas, mas por outro lado, nos abrimos e confiamos naquelas que julgamos estarem próximas. Quando elas agem demonstrando que fomos tolas confiando nelas, a sensação que fica é estranha, e extremamente dolorosa. E era justamente esta sensação que Denise sentia.

Ela e Fernando, seu marido, haviam saído no último final de semana, para irem a um bar. Costume nada habitual, pois preferiam aproveitar os finais de semana para ficar em casa juntos. Mas naquele, resolveram sair um pouco, conversar com alguns amigos. Fazer um programa diferente. Lá pelas tantas da noite, Fernando começou a ficar desligado da conversa na mesa, e passou a fixar o olhar em uma moça que estava no bar. Tinha música ao vivo, e no intervalo da apresentação do show, a moça subiu ao palco e começou a cantar músicas do Djavan. Fernando se empolgou além da conta, e apesar de permanecer sentado ao lado de Denise, ele se ausentou em pensamento. Fixou os olhos no palco, e gritava empolgado, assoviando e batendo palmas, demonstrando abertamente o encantamento que sentia. Denise percebeu, e tentou por várias vezes trazer Fernando para a conversa. Tentativas inúteis, pois ele estava completamente envolvido e encantado pela moça no palco.

Mais tarde a moça foi até a mesa, e os dois trocaram algumas palavras de brincadeira. Aquelas brincadeirinhas típicas de casais que estão na fase de sedução. Nada muito declarado, apenas palavras que só os dois acham que entendem, que podem decifrar. Denise entendeu, e ficou chateada. Sentiu-se desrespeitada. E mais que isso, ficou surpresa! Ela e Fernando tinham um pacto de lealdade, mas naquele momento ela percebeu que o pacto havia sido quebrado.

Naquele dia, uma segunda feira, ela estava pensando a respeito do ocorrido. Será que existe amor realmente? Será que existe alguém no mundo realmente fiel? Não aquela fidelidade que aprisiona uma pessoa a outra, que a impede de viver realmente. Mas aquela fidelidade ao outro e a si mesmo, que nos leva a ser honestos nas nossas atitudes, e respeitoso com o outro, nos nossos comportamentos. E ainda no trajeto para casa, Denise ficou imaginando como seria a vida, se a pessoa que fosse traída, enganada, resolvesse nunca mais acreditar em ninguém, nunca mais se permitisse sonhar, e nem ter ilusões. Passasse a viver a vida de maneira extremamente lúcida, sem se permitir brincar, ou criar fantasias a respeito do que quer que seja. Não se permitisse em hipótese alguma ser tola. Ser sempre desconfiada. E alerta! Vivesse apenas na realidade.

Por um momento ela até pensou que talvez se fosse assim, seria bem melhor. Lembrou de quantas vezes se sentiu tola, nos relacionamentos que teve. Quantas vezes confiou na lealdade das pessoas, ou se enganou quanto à capacidade e vontade das pessoas em respeitá-la, e percebeu que foi ingênua várias vezes. Pensou muito, chegou até mesmo a desejar mudar seu modo de viver e de se relacionar com o mundo.

Mas ainda pensando, se lembrou que, apesar de tantas vezes ter ficado com este sentimento ruim de desilusão, de surpresa indignada, ela continuava a ser uma pessoa feliz. Descobriu que realmente adora viver, e que ninguém merece ser responsável por fazê-la mudar de idéia. Se as pessoas não conseguem viver a própria verdade, não conseguem realizar as próprias fantasias, e nem assumir os pactos que fazem, não é problema dela.

Covardia, deslealdade e incapacidade de respeitar o outro, não são características de alguém que mereça o prêmio da tristeza de quem é feliz. Decididamente ela não ía mudar. Não ía deixar de ser tola, de acreditar, de sonhar e de se permitir ter ilusões! Não se tornaria falsa com ela própria. Continuaria a amar a vida, e a se sentir muito feliz de viver! Denise sentiu uma sensação tão boa de alívio, e sorriu. De verdade!